(Fonte: cálculos próprios a partir de DGEEC (2022) A Educação em Números
(Por meras razões profissionais e não por qualquer motivo de “inside information”, acabo por ter acesso a uma perspetiva sobre algumas políticas públicas que acaba por me proporcionar ângulos e pontos de vista sobre as mesmas que, desolado mas resignado, raramente vejo analisadas na esfera pública, sobretudo em tudo que diz respeito à mediatização de políticas. Hoje decidi escrever sobre uma das políticas públicas que mais oscilou nas últimas duas décadas, a política educativa relativa ao ensino profissional, mostrando que ela se encontra num patamar que podemos classificar de estagnação, sobre o qual, desoladamente, tenho encontrado muito pouca reflexão pública e livre.)
O regresso (ou recuperação) do ensino profissional representou um dos casos mais representativos em que a revolução democrática de abril deixou mais ressentimentos ou pelo menos recriminações mais ou menos saudosistas. Durante muitos anos, na minha vida profissional, encontrei uma multiplicidade de testemunhos clamando pelo regresso do então chamado ensino técnico-profissional, que haveria posteriormente de assumir várias fórmulas, como ensino de dupla certificação, escolar e profissional, ensino vocacional ou na versão atualmente mais utilizada ensino profissional, principalmente cursos profissionais. A generalidade desses testemunhos que se tornaram relativamente recorrentes nas sessões públicas ou mais reservadas em que participei padecia de alguns inconvenientes ou ingenuidades: (i) ignorava deliberadamente que o ensino técnico-profissional, antes de abril de 1974, se integrava numa lógica de exclusão à partida para alguns do acesso à continuidade dos estudos científico-humanísticos e superiores, obviamente alvo da desmontagem política com a revolução de abril; (ii) em períodos mais recentes, esse clamor ignorava que estava já em funcionamento uma modalidade de educação-formação, o sistema de aprendizagem, que praticava já a dualidade de formação em sala e em contexto de trabalho, em regra orientado para o nível de qualificação ISCED 3; (iii) alguns desses testemunhos o que reclamavam era um ensino dual, inspirado no modelo alemão, como se de um momento para o outro fosse possível reproduzir sem mácula um sistema fortemente enraizado na cultura alemã, designadamente empresarial e sindical.
O ensino profissional foi, entretanto, fazendo o seu caminho, com grandes especialistas e entusiastas a seguir esse processo como o Amigo Professor Joaquim Azevedo. Surgiram as primeiras Escolas Profissionais privadas, de base local e por vezes com as empresas fortemente inseridas na sua dinâmica de criação, anunciando coisas positivas. A formação de dupla certificação centrada no Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) de adultos tomou forma com a Iniciativa Novas Oportunidades, período em que a formação de adultos teve o seu apogeu em Portugal. A degenerescência do segundo governo de Sócrates arrumou com as veleidades de extensão dos Centros Novas Oportunidades (CNO) e nem mesmo uma avaliação independente à INO, conduzida pela equipa do Professor Roberto Carneiro e que abria pistas interessantes para se corrigir a trajetória, logrou suster a campanha de desacreditação da abordagem e que conduziu a um longo interregno para a formação de dupla certificação de adultos.
O governo de Passos Coelho e de Nuno Crato ensaiou na antecâmara do período de programação 2014-2020 uma viragem que se traduziu na clara valorização da qualificação inicial de jovens em detrimento da de adultos e que abriu as portas a uma intensa valorização do ensino profissional para jovens, acompanhada de uma aposta nas condições de empregabilidade dessas formações, que conduziu à entrada do ensino profissional nas escolas públicas. Estas passaram a ter intra-muros cursos científico-humanísticos e cursos profissionais, enquanto que as Escolas Profissionais privadas prosseguiam a sua atividade, enfrentando agora a concorrência da Escola Pública.
O primeiro governo PS de António Costa, embora tenha tentado sem grande sucesso retomar a aposta da formação de dupla certificação para adultos, reforçando por exemplo através de reprogramações do Programa Operacional Capital Humano a dotação de Fundo Social Europeu, não deixou de prosseguir a aposta na qualificação inicial de jovens e consagrando sobretudo os Cursos Profissionais como a grande via para essa qualificação inicial. Fê-lo com objetivos de redução substancial das taxas de retenção, insucesso e abandono escolar e também de redução da população jovem NEM-NEM, jovens que nem trabalhavam, nem estudavam, nem se encontravam em formação profissionalizante. A evolução dos níveis de insucesso e abandono escolar tem sido auspiciosa, tendo Portugal já atingido valores abaixo da meta europeia dos 10%. O mesmo se diga em relação à população NEET (Nem-Nem). Resta saber o que tem acontecido relativamente à meta de atingir a paridade entre alunos matriculados no secundário profissional e os alunos dos cursos científico-humanísticos.
Devemos ter em conta que os cursos profissionais não esgotam o universo do secundário profissionalizante. Teremos de contar com modalidades como os cursos artísticos especializados (que têm oscilado entre os 2.500 e os 2.700 matriculados), os cursos de aprendizagem (que nos últimos anos oscilaram em torno dos 20.000 matriculados), os cursos vocacionais (que saíram de cena em 2017/18), os cursos CEF em queda abrupta (tendo atingido em 2020/21 apenas 440 matriculados) e os cursos EFA (adultos, que em 2020/21 equilibravam com os cursos de aprendizagem em torno dos 18.000 matriculados). A meta da paridade do secundário profissionalizante com os científico-humanísticos não envolve apenas os cursos profissionais, embora eles representem a maior quota-parte desse secundário.
Trabalhando apenas os cursos profissionais, observa-se no gráfico que abre este post que os cursos profissionais têm no ano letivo de 2013/14 o seu pico de representatividade no total do secundário e que, a partir daí, estamos perante um “plateau” do qual o sistema tem tido dificuldade em escapar.
Analisando agora o rácio “alunos dos científico-humanísticos/alunos dos cursos profissionais”, percebe-se também que ele estagnou em torno do 1,8, ou seja, com o número de CH a exceder em 80% os matriculados em CP.
Esta longa introdução compreende-se para refletir sobre o contexto em que está mergulhada a aposta no ensino profissional. Estamos num planalto que pode ter várias explicações:
- A demografia pode estar a condicionar a aposta: com crescimento amplo dos cohorts de jovens será mais fácil atrair nova procura ao profissional; perante a estagnação desses grupos a atração dessa procura pode tornar-se mais exigente;
- Uma outra explicação pode ser a de estancamento da procura social das famílias, vencida a inércia inicial a procura aumentou, mas após esse crescimento a inércia a vencer é mais forte e projeta-se na procura dos científico-humanísticos;
- Finalmente, a qualidade do sistema do ensino profissional pode estar a atravessar problemas de afirmação, uma espécie de crise de crescimento que exigiria um salto qualitativo do sistema (formação de professores mais adaptada aos desafios do ensino profissional; racionalização da oferta de cursos profissionais em função da procura das famílias e das empresas; reforço dos serviços de orientação vocacional; adaptação equipamental das escolas públicas para acolher o ensino profissional).
É neste contexto que inscrevo o rumo atual da política pública apostada na valorização do ensino profissional, com a discussão de algumas perplexidades que não estão em linha com o estado da arte do sistema.
O que será amanhã desenvolvido, dia de final do mundial.
Obrigado pela reflexão. Uma nota: a entrada do ensino profissional nas escolas públicas "regulares" dá-se com a Ministra Lourdes Rodrigues, ainda antes do governo de Passos Coelho. Foi uma das medidas na extensa reforma que lançou.
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