(Notas soltas sobre o nevoeiro institucional que nos rodeia.
Não acredito na pureza bacteriológica de instituições acima da
sociedade.)
As sociedades, incluindo as democráticas, são necessariamente impuras e
imperfeitas. O seu equilíbrio depende do modo como se limitam, combatem e regulam
tais imperfeições. Não acredito, por isso, quando alguns corpos sociais ou
conjuntos de personalidades se arvoram enquanto tais a personalizar a pureza e
a perfeição, atribuindo-se prerrogativas especiais para levar a bom porto esse
desígnio. Há imensos exemplos na história, recente e longínqua, que mostram que
tais pretensões acabam por correr mal e mostrar que eram modalidades encapotadas
de captura de poder ou de opressão.
É com esta perceção da construção das sociedades democráticas, particularmente
daquelas em que a democracia é relativamente recente, que tendo a interpretar
este nevoeiro que nos cerca e oprime por estes dias, com a justiça no centro
das atenções. Tivemos de tudo nos últimos dias.
A justiça a abrir processos a mando e sugestão de pasquins (Correio da Manhã)
ou de projetos editorais coerentes e politicamente orientados (Observador). O
caso Centeno inscreve-se nesta lógica, com a descarada e impune busca ao gabinete
do Ministro das Finanças a representar a cereja em cima do bolo, para onda
populista ver e acreditar que a justiça cavalga a onda populista de acerto de
contas com essa sempre suspeita classe política, mesmo que internacionalmente prestigiada.
É o caso FIZZ a dar conta das perversidades da financeirização da economia
portuguesa, com Angola à mistura, para a pincelada que não podia faltar do
capitalismo periférico e dependente, com inversão dos papéis coloniais (afinal é
sempre tudo uma questão de onde está e onde há “papel”). Em pleno FIZZ, lá aparece
um procurador e começa a ser claro que há sempre por aí “novos donos disto tudo”
(o somaticamente adequado Proença).
O caso LEX, com origem no Rota do Atlântico, é mais uma manifestação da distorção
da financeirização, com ex-colónias à mistura (Cabo Verde, neste caso) e ramificações
ao futebol. Mas tomando como hipótese de trabalho a que o EXPRESSO divulga este
fim-de-semana, teríamos alegadamente neste caso uma situação típica de venda de
pomada de banha de cobra, esta sim profundamente enraizada no imaginário
popular português. Alegadamente, pelo que se retira do EXPRESSO, o juiz Rangel
prometeria benesses que não poderia concretizar, pois os terceiros envolvidos não
sabiam de nada. Uma combinação típica da nossa herança genética: justiça (os
que se aproveitam indevidamente da mesma), ambição (o consumo, sempre o consumo)
e pequena sociedade (a dos pequenos favores, um jeitinho que tanto jeito me
dava, a cunha escondida, o conforto de estarmos protegidos com alguém importante
e com poder de decisão ou de a influenciar). Combinação exemplar, não é?
Para apimentar a questão, outros avançaram com um outro dado (corporativo,
marcadamente corporativo): a juíza Fátima Galante estaria prestes a ingressar
no Supremo. Sempre a velha questão cabalística: porquê só agora?
Neste contexto, não tem para mim significado dizer que teremos de estar
descansados porque a justiça é para todos e que atinge os seus próprios
elementos. Pudera que assim não fosse. O que não tem sentido é fazer emergir a
justiça como o último reduto da perfeição societária. Justiça, política,
economia e outras vidas são feitas da mesma carga genética, em todas elas existe
essa tensão entre respeitar e cumprir a lei e contorná-la ou violar a mesma,
entre a ética e moral e a antiética e a imoralidade.
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