quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

DOUTORAMENTOS. COMO SOMOS INCORRIGÍVEIS!

(Com a devida vénia à imagem de Adriano Miranda no Público)


(O Governo acaba de anunciar a possibilidade dos Institutos Politécnicos atribuírem doutoramentos. O anúncio teve uma génese elucidativa. A OCDE apareceu, recomendou a medida e as resistências aparentemente foram vencidas. Não há dúvida de que somos incorrigíveis… )

Já há algum tempo que, no âmbito de alguns trabalhos realizados para instituições de ensino superior, designadamente o Instituto Politécnico do Porto por convite da sempre estimulante Professora Rosário Gambôa, tenho defendido a inevitabilidade dos Institutos Politécnicos (IP) poderem atribuir o grau de doutoramento. Por via da política pública e da ação reguladora da A3ES, os IP foram submetidos durante largo tempo a uma forte pressão no sentido de melhorar substancialmente a qualificação dos seus corpos docentes. O aumento do número de docentes doutorados constituiu o resultado dessa pressão à qual aquelas instituições responderam afincadamente. Diga-se, entretanto, que a esmagadora maioria dos docentes envolvidos nesses processos o fizeram em circunstâncias bem mais adversas do que os seus colegas das Universidades. Entre outros aspetos, a maioria não beneficiou de dispensas de serviço e creio que os que o fizeram com bolsa de apoio público foram uma minoria.

O que eu quero dizer é que a política pública de ensino superior em Portugal submeteu os IP a uma enorme pressão de regulação, designadamente para acreditação de cursos de licenciatura e de mestrado. Embora nunca conseguindo atingir as percentagens de docentes com doutoramento que as Universidades apresentam (note-se que o contexto de partida era profundamente desigual), a verdade é que a resposta dos IP foi notável e os seus docentes merecem esse reconhecimento.

Para além disso, é conhecido que muitos professores doutorados docentes de IP integram júris de doutoramento, reconhecidos por conseguinte entre pares, chegando mesmo a observar-se casos de orientação de doutorandos embora formalmente fosse um doutorado de Universidade que assumia oficialmente essa posição. Tudo isso porque no regime do ensino superior estava vedada a possibilidade de concessão de doutoramentos por parte dos IP. Ou seja, pura hipocrisia. Entre pares a formação científica dos melhores nos IP era reconhecida entre pares mas institucionalmente assim não acontecia. Para esta hipocrisia muito contribuiu a inércia esmagadora que ainda atravessa as Universidades e sobretudo, variável em função dos governos, a obtusa conceção de que em Portugal ainda vigora efetivamente um sistema binário, quando na prática os sistemas universitário e politécnico estão já irremediavelmente imbricados. Ainda há poucos anos, dois diretores de Institutos Politécnicos me contavam, lívidos e espantados, que o secretário de Estado do Ensino Superior do ministro Crato (Professor Ferreira Gomes, que se deve ter passado com a sua experiência governativa, dada a minha boa impressão anterior) os tinha presenteado com intervenções e recomendações de que o futuro dos Politécnicos seria concentrarem-se na formação de serralheiros, picheleiros e outros, ou seja qualificações intermédias.

Muito sinceramente, e escrevi-o com todas as letras, não me lembro de outro caso mais escabroso do ponto de vista da contradição entre uma política de incentivos (a melhoria das qualificações nos IP) e a incapacidade de tirar partido dos resultados positivos dessa política. Condenar os IP a uma destruição de recursos públicos não lembraria ao diabo, mas passou pela cabeça de muitos universitários iluminados.

Aliás, em reunião de trabalho promovida pela Fundação Calouste Gulbenkian para discussão prévia de um estudo sobre o ensino superior que penso não ter chegado à luz do dia, vá lá saber-se porquê, o Professor Marçal Grilo reagia à minha tese avançando com o tema da qualidade dos doutoramentos. A insinuação era que muitos dos doutoramentos promovidos pelos IP andavam por Universidades como León, Segóvia e outras que tais (todas com reconhecimento europeu), como que alvitrando que doutoramentos de terceira e de quarta não deveriam contar para o campeonato das massas críticas. Oh| almas penadas, será que tudo o que é doutoramento universitário se faz em Berkeley, Cambridge, Harvard ou no Imperial Coolege? Não, pois não? Por isso, também a Universidade pode ser estigmatizada pela hierarquização normal dos rankings universitários, não apenas os Politécnicos.

A inevitabilidade da mudança estava aí à nossa disposição, com clareza, que só a inércia se recusava a ver. Aliás, não se percebe por que razão a A3ES se pronuncia sobre a viabilidade de um curso de doutoramento nas Universidades e não poderia pronunciar-se sobre tal possibilidade nos doutoramentos IP. Claro que os mais lúcidos sabem que um número reduzido de IP poderá imediatamente abrir doutoramentos. Obviamente. Mas o problema era não equilibrar pela mediocridade e permitir que os mais qualificados dentro dos IP possam prosseguir a fileira da qualificação.

Alguns anos passaram e foi necessário que a OCDE viesse reconhecer essa inevitabilidade para que o Governo se sentisse validado para vencer de vez a inércia e a resistência. O Ministro da Ciência e do Ensino Superior apresentou a medida, esperando eu sinceramente que a inércia da Universidade não queira vencer na secretaria, emperrando a aplicação da medida. E não se trata apenas de metas de qualificação de recursos humanos avançados. Neste caso, é dar coerência a uma política de estímulos à qualificação de IP que sustentadamente a política pública tem vindo a promover, tirando dela partido e não ignorando que as massas críticas de doutorados também nos IP se estão a formar.

Continuamos incorrigíveis como defendemos pequenos feudos de inércia e resistência. Que nos valham as OCDE deste mundo para validar por fora o que parecia inevitável para um mínimo de lucidez.

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