(El Roto)
(Daniel Higaldo Sartori)
(Ao contrário do que se observa em Portugal, onde a
geringonça veio trazer um novo fôlego que diferiu para mais tarde o debate
necessário, na vizinha Espanha o realinhamento de ideias está no coração do
presente político. A gravura de Daniel Hidalgo Sartori e o
incontornável traço de El Roto acompanham-nos nessa reflexão… )
A comparação, a vários níveis e dimensões, entre o que se passa cá pelo
burgo e o que vai acontecendo pela nossa vizinha Espanha, é um assunto
inesgotável, do mercado de trabalho aos realinhamentos políticos, passando pelo
sistema financeiro, onde a nossa pequenez é por demais evidente. De facto,
apesar de todos falarmos no mercado interno da Ibéria, de muitos analistas
começarem a perspetivar o interior português numa perspetiva ibérica e das
dinâmicas transfronteiriças, a verdade é que as singularidades persistem. Dirão
alguns que a história tem muito peso. Não é em vão que uma Guerra Civil
aconteceu e poderíamos por ai fora cavar fundo na história dos dois países.
Do ponto de vista político, Portugal e Espanha vivem na sua integração
europeia processos e momentos muito diferenciados. Como já repetidas vezes
avancei, uma “geringonça” não é de todo possível em Espanha (afastado embora o
determinismo destas conclusões). A razão fundamental, que pode ser controversa,
admito-o, é que em Espanha não existe um partido comunista como o PCP, deixando
de fora por agora o confronto entre o Bloco de Esquerda e o ainda inorgânico
movimento do PODEMOS.
Não defendo que a modalidade “geringonça” possa ser interpretada como algo
de não dinâmico. Tem dado provas disso e creio que o dinamismo, para o bem e
para o mal, vai acentuar-se à medida que caminharmos para as eleições de fim de
legislatura. Mas a verdade é que o ambiente político espanhol vive neste
momento uma situação de forte instabilidade dinâmica. Podemos dizer que o lio
da Catalunha constitui o acelerador desse dinamismo, mas creio que as dinâmicas
subjacentes são anteriores ao agravamento do desequilíbrio catalão. Vejamos mais
em pormenor o que se vai passando, aproveitando a boleia de mais uma genial
vinheta de El Roto, nosso companheiro de sempre nas nossas reflexões, e também
de uma gravura de Hidalgo Sartori que acompanha um artigo de Jordi Sevilla no
El Mundo (link aqui).
Comecemos pelo que se passa à direita. Um profundo realinhamento está em
curso entre a modernidade de um CIUDADANOS que capitaliza a sua emergência como
única alternativa credível ao independentismo catalão e a dificuldade de lidar
com o presente do PP. Há quem pense que a aparente agonia do PP se centra
principalmente na inabilidade de Rajoy para, primeiro, cortar a direito no
chuveiro de corrupção que se abateu sobre o partido e, depois, na longa espera
a que se entregou antes de atacar de frente (por via judicial e da aplicação do
155º) as travessuras do independentismo catalão. Claro que estes dois aspetos
são detonadores relevantes do transvase de votos potenciais que tem sido
observado do PP para o CIUDADANOS. Mas em meu entender estamos perante traços
mais profundos que talvez se manifestassem, mais tarde é possível, sem o
acelerador da Catalunha. O PP aglutinou-se em torno de uma maioria sociológica,
tradicionalista, dominantemente religiosa, espanholista nos seus traços mais
profundos, centralista quanto baste, que fez uma longa adaptação para se
adaptar ao fenómeno urbano que foi avançando irreversivelmente por toda a
Espanha. Tenho memória clara dos tempos em que, mergulhado nessa longa e
exigente adaptação, o PP foi durante algum tempo suplantado pela modernidade
emergente do PSOE que foi ganhando expressão no voto urbano. Mas essa adaptação
produziu-se e, por exemplo, na Galiza, o PP regressou ao domínio do eleitorado
urbano, coincidindo aliás com um longo declínio do PSOE na era pós Filipe González.
Interrogo-me por vezes se a adaptação urbana do PP foi pura cosmética ou
real. É que, entretanto o avanço da urbanização em Espanha, aconteceu em
simultâneo com a aguda financeirização da economia espanhola. A crise de
2007-2008 mais do que salpicou o sistema espanhol, as imparidades emergiram
como cogumelos em terreno húmido e a justiça mostrou que, tal como cá, por
detrás de tais imparidades havia corrupção para todos os gostos, das cajas mais
locais ou regionais aos bancos mais relevantes. Em toda essa corrupção, o PP apareceu
galhardamente a dizer presente, com o pobre Rajoy rodeado de ninhos de vespas
por todos os lados.
Não tenho investigação de suporte para avaliar se o PP foi ou não renovando
a sua base sociológica urbana, indo além do tradicionalismo e espanholismo de
origem. A OPUS DEI terá sido durante todo este tempo o fiel da balança. Ela foi
própria atingida no seu âmago com a corrução, veja-se o tombo da Caixa Galicia
(centrada na Corunha) e claramente alinhada com o pensamento e obra da OPUS. Até
agora, não creio haver sinais de que a OPUS esteja a abandonar o PP, mas admito
que esteja na expectativa e não desdenharia que já estivesse com um pé (apenas
um?) no CIUDADANOS. É por isso interessar perceber se o acelerador catalão se
limitou a libertar forças que apareceriam de qualquer modo a terreiro. Há
também na emergência do CIUDADANOS uma mudança etária e de transição de valores
a não ignorar. Esse é aliás o dado dinâmico mais interessante que ressalta da
projeção de RIVERA e de ARRIMADAS. Não posso ignorar que o partido nasceu na
Catalunha, ainda sem este toque de direita moderna com que pretende embalar-se,
a partir de um conjunto de personalidades de grande alcance cívico, agrupadas
na associação cívica Ciutadans de Catalunya que discordavam da inflexão que os
socialistas catalães estavam a produzir.
Emerge aqui uma tensão PP – CIUDADANOS que em si própria é um fator de
dinamismo. Ainda na expectativa de uma reação PP com todas as suas armas de
largo porte não é possível saber se os mais novos pegarão o touro com eficácia.
Do lado do PSOE, Jordi Rovilla lembra no artigo citado de que todos os últimos
líderes se fizeram eco de promessas de que um novo PSOE iria emergir das cinzas.
O que não aconteceu. Um fator de tumulto chamou-se PODEMOS. Impactou e de que
maneira as debilidades do PSOE em identificar-se com os problemas dos espanhóis
em geral, pelo menos até que as fissuras inevitáveis na inorganicidade do
PODEMOS se fizessem sentir. Aparentemente, o PSOE perdeu presa eleitoral para o
PODEMOS e parece agora ter estagnado a recuperação desse eleitorado. Estabilizado
esse tumulto, a pergunta incontornável é a de saber se a modernidade aparente
do CIUDADANOS vai morder no eleitorado PSOE. Rovilla identifica os fatores de
contexto internacional que puxam por um novo socialismo, a globalização, a
revolução digital e tecnológica e as mudanças climáticas, mas não tenho evidência
de que o programa de Sánchez vá decisivamente além da retórica. Não creio que a
recuperação da confiança se faça por grandes textos programáticos.
Moral da história: se algum dinamismo resulta do momento político espanhol
não parece acontecer à esquerda.
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