segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

REALINHAMENTO DE IDEIAS EM ESPANHA

(El Roto)
(Daniel Higaldo Sartori)


(Ao contrário do que se observa em Portugal, onde a geringonça veio trazer um novo fôlego que diferiu para mais tarde o debate necessário, na vizinha Espanha o realinhamento de ideias está no coração do presente político. A gravura de Daniel Hidalgo Sartori e o incontornável traço de El Roto acompanham-nos nessa reflexão… )

A comparação, a vários níveis e dimensões, entre o que se passa cá pelo burgo e o que vai acontecendo pela nossa vizinha Espanha, é um assunto inesgotável, do mercado de trabalho aos realinhamentos políticos, passando pelo sistema financeiro, onde a nossa pequenez é por demais evidente. De facto, apesar de todos falarmos no mercado interno da Ibéria, de muitos analistas começarem a perspetivar o interior português numa perspetiva ibérica e das dinâmicas transfronteiriças, a verdade é que as singularidades persistem. Dirão alguns que a história tem muito peso. Não é em vão que uma Guerra Civil aconteceu e poderíamos por ai fora cavar fundo na história dos dois países.

Do ponto de vista político, Portugal e Espanha vivem na sua integração europeia processos e momentos muito diferenciados. Como já repetidas vezes avancei, uma “geringonça” não é de todo possível em Espanha (afastado embora o determinismo destas conclusões). A razão fundamental, que pode ser controversa, admito-o, é que em Espanha não existe um partido comunista como o PCP, deixando de fora por agora o confronto entre o Bloco de Esquerda e o ainda inorgânico movimento do PODEMOS.

Não defendo que a modalidade “geringonça” possa ser interpretada como algo de não dinâmico. Tem dado provas disso e creio que o dinamismo, para o bem e para o mal, vai acentuar-se à medida que caminharmos para as eleições de fim de legislatura. Mas a verdade é que o ambiente político espanhol vive neste momento uma situação de forte instabilidade dinâmica. Podemos dizer que o lio da Catalunha constitui o acelerador desse dinamismo, mas creio que as dinâmicas subjacentes são anteriores ao agravamento do desequilíbrio catalão. Vejamos mais em pormenor o que se vai passando, aproveitando a boleia de mais uma genial vinheta de El Roto, nosso companheiro de sempre nas nossas reflexões, e também de uma gravura de Hidalgo Sartori que acompanha um artigo de Jordi Sevilla no El Mundo (link aqui).

Comecemos pelo que se passa à direita. Um profundo realinhamento está em curso entre a modernidade de um CIUDADANOS que capitaliza a sua emergência como única alternativa credível ao independentismo catalão e a dificuldade de lidar com o presente do PP. Há quem pense que a aparente agonia do PP se centra principalmente na inabilidade de Rajoy para, primeiro, cortar a direito no chuveiro de corrupção que se abateu sobre o partido e, depois, na longa espera a que se entregou antes de atacar de frente (por via judicial e da aplicação do 155º) as travessuras do independentismo catalão. Claro que estes dois aspetos são detonadores relevantes do transvase de votos potenciais que tem sido observado do PP para o CIUDADANOS. Mas em meu entender estamos perante traços mais profundos que talvez se manifestassem, mais tarde é possível, sem o acelerador da Catalunha. O PP aglutinou-se em torno de uma maioria sociológica, tradicionalista, dominantemente religiosa, espanholista nos seus traços mais profundos, centralista quanto baste, que fez uma longa adaptação para se adaptar ao fenómeno urbano que foi avançando irreversivelmente por toda a Espanha. Tenho memória clara dos tempos em que, mergulhado nessa longa e exigente adaptação, o PP foi durante algum tempo suplantado pela modernidade emergente do PSOE que foi ganhando expressão no voto urbano. Mas essa adaptação produziu-se e, por exemplo, na Galiza, o PP regressou ao domínio do eleitorado urbano, coincidindo aliás com um longo declínio do PSOE na era pós Filipe González.

Interrogo-me por vezes se a adaptação urbana do PP foi pura cosmética ou real. É que, entretanto o avanço da urbanização em Espanha, aconteceu em simultâneo com a aguda financeirização da economia espanhola. A crise de 2007-2008 mais do que salpicou o sistema espanhol, as imparidades emergiram como cogumelos em terreno húmido e a justiça mostrou que, tal como cá, por detrás de tais imparidades havia corrupção para todos os gostos, das cajas mais locais ou regionais aos bancos mais relevantes. Em toda essa corrupção, o PP apareceu galhardamente a dizer presente, com o pobre Rajoy rodeado de ninhos de vespas por todos os lados.

Não tenho investigação de suporte para avaliar se o PP foi ou não renovando a sua base sociológica urbana, indo além do tradicionalismo e espanholismo de origem. A OPUS DEI terá sido durante todo este tempo o fiel da balança. Ela foi própria atingida no seu âmago com a corrução, veja-se o tombo da Caixa Galicia (centrada na Corunha) e claramente alinhada com o pensamento e obra da OPUS. Até agora, não creio haver sinais de que a OPUS esteja a abandonar o PP, mas admito que esteja na expectativa e não desdenharia que já estivesse com um pé (apenas um?) no CIUDADANOS. É por isso interessar perceber se o acelerador catalão se limitou a libertar forças que apareceriam de qualquer modo a terreiro. Há também na emergência do CIUDADANOS uma mudança etária e de transição de valores a não ignorar. Esse é aliás o dado dinâmico mais interessante que ressalta da projeção de RIVERA e de ARRIMADAS. Não posso ignorar que o partido nasceu na Catalunha, ainda sem este toque de direita moderna com que pretende embalar-se, a partir de um conjunto de personalidades de grande alcance cívico, agrupadas na associação cívica Ciutadans de Catalunya que discordavam da inflexão que os socialistas catalães estavam a produzir.

Emerge aqui uma tensão PP – CIUDADANOS que em si própria é um fator de dinamismo. Ainda na expectativa de uma reação PP com todas as suas armas de largo porte não é possível saber se os mais novos pegarão o touro com eficácia.

Do lado do PSOE, Jordi Rovilla lembra no artigo citado de que todos os últimos líderes se fizeram eco de promessas de que um novo PSOE iria emergir das cinzas. O que não aconteceu. Um fator de tumulto chamou-se PODEMOS. Impactou e de que maneira as debilidades do PSOE em identificar-se com os problemas dos espanhóis em geral, pelo menos até que as fissuras inevitáveis na inorganicidade do PODEMOS se fizessem sentir. Aparentemente, o PSOE perdeu presa eleitoral para o PODEMOS e parece agora ter estagnado a recuperação desse eleitorado. Estabilizado esse tumulto, a pergunta incontornável é a de saber se a modernidade aparente do CIUDADANOS vai morder no eleitorado PSOE. Rovilla identifica os fatores de contexto internacional que puxam por um novo socialismo, a globalização, a revolução digital e tecnológica e as mudanças climáticas, mas não tenho evidência de que o programa de Sánchez vá decisivamente além da retórica. Não creio que a recuperação da confiança se faça por grandes textos programáticos.

Moral da história: se algum dinamismo resulta do momento político espanhol não parece acontecer à esquerda.

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