domingo, 11 de fevereiro de 2018

UM TEXTO CRUEL MAS RELEVANTE




(O texto ´Purgatório um retrato de Vasco Pulido Valente´ que Henrique Raposo assina no Expresso é talvez um documento cruel, atendendo ao afastamento de VPV das crónicas, não imagino ditado por que razão. Mas na sua crueldade antisnobeira estamos perante um documento de rara oportunidade sobre as poucas reflexões críticas a que nos temos entregado a propósito do nosso destino coletivo … )

Pelo que se consegue perceber da apresentação do artigo, Henrique Raposo (HR) estará a preparar uma biografia política e intelectual de Vasco Pulido Valente (VPV) e o texto refletirá o sentido da investigação que atravessará a referida biografia.

Não sou propriamente um seguidor da prosa de HR como o era da de VPV, ainda que abominasse o seu ar de incomodado permanente, destilando fel por tudo que é parágrafo e frase acabada. Mas descontando no artigo o que me parece ser uma espécie de vingança estrutural sobre o tecido social que enquadrou a vida do biografado, acho que estamos perante um raro documento de oportunidade sobre a reflexão que fazemos pouco sobre a nossa realidade de povo às turras com algumas das suas elites. A crueldade do texto estará na minha interrogação se VPV estará em condições físicas e de saúde para uma resposta à letra, que poderia constituir um também raro momento de acerto de contas com aspetos marcantes do nosso passado recente.

No texto de Raposo há pistas de grande alcance para o entendimento da nossa personalidade coletiva, acaso esse conceito exista. Desde a psicanálise mítica do povo português que Eduardo Lourenço avançou no seu Labirinto da Saudade, têm escasseado exercícios desse calibre, que os sociólogos costumam desdenhar e varrer para a irrelevância, por considerarem que não assentam em categorias sociológicas rigorosas. Despertou-me sobretudo a atenção a associação que HR faz do pensamento e maneira de pensar o País de VPV e do queirosianismo.

De facto, é deveras impressionante a influência que as categorias e estereótipos criados por Eça de Queiroz nas suas páginas e personagens imortais exerceram na forma de ver o País e o seu futuro. HR fala, assim, de uma patine neoqueirosiana que VPV interpretaria na perfeição. A contundência do argumento de Raposo é violenta: “O que é trágico é que VPV perdeu no terreno que ele próprio escolheu: os factos. Se olhasse com respeito para os factos, nunca poderia ter mantido durante décadas a narrativa ‘isto vai de mal a pior’. Para desarmarmos essa narrativa, só temos de passar cinco minutos no site da PORDATA criado por António Barreto: em todos os indicadores mensuráveis, a vida política, social, económica, cultural e educativa dos portugueses melhorou durante o tempo de vida de VPV; quando em 1941 o pequeno Vasco nasceu em Lisboa, ainda havia portugueses a morrer de malária nos campos do Sado e do Baixo Mondego. Moral da história? Nas colunas do autoproclamado realista-mor do reino, os factos foram sendo sempre vencidos pela pós-verdade do snobismo (contra o cavaquismo) e pelo spleen queirosiano (contra a democracia em geral)”.

Mais profunda e controversa é o libelo acusatório de HR sobre a narrativa “desinteressante e branda” de VPV, ignorando voluntariamente a violência ou as vítimas da violência da sociedade portuguesa e da sua história, gerando o tal “ramerrame pachorrento” de que HR fala, o lado queirosiano de uma espécie de purgatório permanente inibidor do progresso e da mudança.

Por isso, acho que não é possível ficar indiferente a este texto, qualquer que seja o contexto pessoal que conduziu à sua redação. Anda por aí, perigosamente, a instalar-se a prática de olhar uma obra de arte em função da sacanice ou malfeitorias do seu autor. Estou perfeitamente a marimbar-me para essa onda de purificação que os falsos puros apregoam.

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