(O texto ´Purgatório um retrato de Vasco Pulido Valente´ que
Henrique Raposo assina no Expresso é talvez um documento cruel, atendendo ao
afastamento de VPV das crónicas, não imagino ditado por que razão. Mas
na sua crueldade antisnobeira estamos perante um documento de rara oportunidade
sobre as poucas reflexões críticas a que nos temos entregado a propósito do nosso
destino coletivo … )
Pelo que se consegue perceber da apresentação do artigo, Henrique Raposo (HR)
estará a preparar uma biografia política e intelectual de Vasco Pulido Valente
(VPV) e o texto refletirá o sentido da investigação que atravessará a referida biografia.
Não sou propriamente um seguidor da prosa de HR como o era da de VPV, ainda
que abominasse o seu ar de incomodado permanente, destilando fel por tudo que é
parágrafo e frase acabada. Mas descontando no artigo o que me parece ser uma
espécie de vingança estrutural sobre o tecido social que enquadrou a vida do
biografado, acho que estamos perante um raro documento de oportunidade sobre a
reflexão que fazemos pouco sobre a nossa realidade de povo às turras com
algumas das suas elites. A crueldade do texto estará na minha interrogação se
VPV estará em condições físicas e de saúde para uma resposta à letra, que poderia
constituir um também raro momento de acerto de contas com aspetos marcantes do
nosso passado recente.
No texto de Raposo há pistas de grande alcance para o entendimento da nossa
personalidade coletiva, acaso esse conceito exista. Desde a psicanálise mítica do
povo português que Eduardo Lourenço avançou no seu Labirinto da Saudade, têm escasseado
exercícios desse calibre, que os sociólogos costumam desdenhar e varrer para a
irrelevância, por considerarem que não assentam em categorias sociológicas
rigorosas. Despertou-me sobretudo a atenção a associação que HR faz do
pensamento e maneira de pensar o País de VPV e do queirosianismo.
De facto, é deveras impressionante a influência que as categorias e estereótipos
criados por Eça de Queiroz nas suas páginas e personagens imortais exerceram na
forma de ver o País e o seu futuro. HR fala, assim, de uma patine neoqueirosiana
que VPV interpretaria na perfeição. A contundência do argumento de Raposo é
violenta: “O que é trágico é que VPV perdeu no terreno
que ele próprio escolheu: os factos. Se olhasse com respeito para os factos,
nunca poderia ter mantido durante décadas a narrativa ‘isto vai de mal a pior’.
Para desarmarmos essa narrativa, só temos de passar cinco minutos no site da PORDATA
criado por António Barreto: em todos os indicadores mensuráveis, a vida política,
social, económica, cultural e educativa dos portugueses melhorou durante o
tempo de vida de VPV; quando em 1941 o pequeno Vasco nasceu em Lisboa, ainda
havia portugueses a morrer de malária nos campos do Sado e do Baixo Mondego. Moral
da história? Nas colunas do autoproclamado realista-mor do reino, os factos
foram sendo sempre vencidos pela pós-verdade do snobismo (contra o cavaquismo)
e pelo spleen queirosiano (contra a democracia em geral)”.
Mais profunda e controversa é o
libelo acusatório de HR sobre a narrativa “desinteressante e branda” de VPV, ignorando
voluntariamente a violência ou as vítimas da violência da sociedade portuguesa
e da sua história, gerando o tal “ramerrame pachorrento” de que HR fala, o lado queirosiano
de uma espécie de purgatório permanente inibidor do progresso e da mudança.
Por isso, acho que não é possível
ficar indiferente a este texto, qualquer que seja o contexto pessoal que conduziu
à sua redação. Anda por aí, perigosamente, a instalar-se a prática de olhar uma
obra de arte em função da sacanice ou malfeitorias do seu autor. Estou perfeitamente
a marimbar-me para essa onda de purificação que os falsos puros apregoam.
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