sábado, 3 de fevereiro de 2018

LEITURA RECOMENDÁVEL


Nas minhas curtas férias de final do ano, encontrei-me com um novo grande escritor português: chama-se João Pinto Coelho (JPC), nasceu em Londres há 51 anos, é licenciado em Arquitetura e diz-se que se “refugiou” há algum tempo numa aldeia duriense para assim melhor poder explorar a chama da sua inspiração literária. JPC foi o vencedor do Prémio Leya 2017 com o magnífico romance “Os Loucos da Rua Mazur”, o seu segundo após se ter estreado com “Perguntem a Sarah Gross” em 2014.

Da biografia de JPC consta que ele integrou duas ações do Conselho Europa que tiveram lugar em Oświęcim, localidade onde ficava o campo de concentração de Auschwitz, e que tal lhe permitiu trabalhar de perto com diversos investigadores do Holocausto. Aí terá nascido a ideia para o seu primeiro livro, sendo que algo terá ficado por contar – mais concretamente, o massacre de judeus por cristãos polacos em Jedwabne em 1941 – e que tal o terá empurrado para voltar ao tema no mais recente, aliás aquele a que aqui me reporto por ter sido aquele que acidentalmente comecei por ler.

As justificações do júri do maior prémio literário nacional, designadamente as do seu presidente Manuel Alegre, já diziam bastante sobre os fundamentos da atribuição e, sobretudo, sobre a singularidade da obra e a qualidade literária do autor – cito avulsamente: “as qualidades de efabulação e verosimilhança em episódios de violência brutal com motivações ideológico-políticas e étnico-religiosas, emergindo de uma convivência comunitária multissecular”; “a criação de personagens com densa singularidade existencial, no triângulo perturbador de amizade e conflito amoroso dos protagonistas, tal como de figuras secundárias com valor simbólico“; “a força humana de um protagonista, o velho livreiro cego, que irá ficar como uma figura inesquecível da nossa ficção mais recente”. E ainda: “um romance bem estruturado, bem escrito, que capta a atenção do leitor, quer pelo tema quer pela construção em tempos paralelos, um no passado imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial e no início desta, e o outro no mundo atual” e “não cede ao facilitismo do romance histórico, embora a história seja parte da ação e nos apresente uma visão inédita da tragédia resultante das invasões russa e nazi da Polónia.”

Descendo a um nível de maior detalhe, recorro a um texto do “Observador” para situar a narrativa de JPC (“fala-nos da universalidade do mal, não da sua banalidade”): “Muito se tem escrito e romanceado sobre a II Guerra Mundial, quase sempre a partir do comportamento invasor alemão, quase sempre com papeis consensualmente atribuídos a vítimas e a agressores”, mas “‘Os Loucos da Rua Mazur’ dá voz e visibilidade a uma forma especialmente perversa do domínio ocupante, nazi e soviético, aquela que conseguiu corromper as bases da convivência e confiança comunitária [numa pequena comunidade situada na Polónia onde cristãos e judeus conviviam e se relacionavam em contextos intimistas e pacíficos], substituindo-a por dilação, denúncia e antissemitismo levado ao extremo, entre os próprios polacos, retratando a forma como muitos foram exterminados fora dos campos e dos guetos.” Ou seja, “apresenta uma abordagem diferente deste momento da história”, assim: “No nordeste da Polónia, entre 1935 e 1941, acompanhamos a vida de três amigos, jovens adolescentes, que vêm as suas vidas clivadas pelos acontecimentos geopolíticos de então e pela herança religiosa e cultural que transportavam consigo. Yankel, judeu, cego, torna-se décadas mais tarde livreiro em Paris, capaz de encontrar imagens para retratar a realidade. Eryk, católico, maquiavélico, revela-se um improvável escritor que se disfarça nas personagens que cria, ensaiando a própria vida nos romances. Shionka, uma muda funcional que se torna relatora e editora, voz de memórias que agridem quem as recupera. O foco é surpreendente, indo com detalhe a parcelas da vida de um povo que se viu duplamente invadido e dividido pelos dois invasores, alemães e russos, como pela fragmentação social e religiosa surgida na própria sociedade polaca. (...) Já em 2001, em Paris, cada um dos três protagonistas, fisicamente sobreviventes, mas emocionalmente esfarrapados, dão corpo à resiliência, reserva e dignidade do povo polaco. Ao recuperarem as memórias da inverosimilhança de episódios passados, vividos pelos próprios constatam que ‘quem viu de frente o inferno, não pode querer lá voltar nem contar o que encontrou’”.

O livro suscitou reações críticas desagradadas na Polónia e por parte das autoridades polacas, nomeadamente através do embaixador em Lisboa (que falou em faltas de fundamentação, desinserção do contexto histórico e “generalizações injustas”). Ao que JPC ripostou deste modo: “O que nos deve perturbar acima de todas as outras evidências é o envolvimento criminoso de pelo menos quarenta cidadãos polacos e a passividade com que grande parte da cidade assistiu às atrocidades, tal como consta das conclusões da investigação do Instituto da Memória Nacional”. Noutras declarações, explicava ainda: (i) “Quando acabei o livro [‘Perguntem a Sarah Gross’], que se centrava mais no Holocausto propriamente dito, o processo feito pelos alemães, deixei ficar um bocadinho a ideia de que [aquilo] só aconteceu com os alemães. Este livro é escrito com as entrelinhas do primeiro.” (ii) “Este livro fala-nos dos outros atores, os bons cristãos da Polónia, que conviveram durante séculos com os seus vizinhos judeus e que, num determinado contexto, decidiram praticar o mal da forma mais terrível. Aquilo [‘atos terríveis’ por parte daqueles que foram vítimas] era uma improbabilidade, mas aconteceu mesmo.” (iii) “Na Polónia, está hoje a causar um debate muito aceso, até com a própria intervenção política, que está a tentar reescrever a história. Tem a ver com a memória coletiva.” (iv) “Tudo o que aconteceu durante o Holocausto e nestes casos paralelos, é o que me tem mantido preso à historia deste processo terrível de perseguição dos judeus no século XX. Quanto mais procuro perceber, mais interrogações reúno, e isso resulta nesse fascínio de tentar cada vez mais perceber o que aconteceu.” (v) “Ainda hoje esbarro com histórias que me surpreendem”, “ainda há muito para descobrir sobre a historia da Segunda Guerra Mundial.”

Talvez que estas chamadas de atenção para o que se viveu na Polónia – onde cerca de seis milhões de pessoas foram mortas durante a II Guerra Mundial e onde durante anos, num traumático acréscimo, “a qualquer momento qualquer pessoa poderia ser alvo do extermínio, fosse qual fosse o pretexto, religioso, genético, étnico ou tão só estético”, ao que se seguiu todo o peso do complexo período da presença comunista – nos ajude a melhor compreender, e até relevar, aquilo que de absurdo se vai passando na Polónia de hoje, país membro de pleno direito da União Europeia. Talvez, muito provavelmente que sim, será assunto a retomar noutra altura e a partir de outros enfoques.

Por ora, já me pus a ler o romance inaugural de JPC e posso antecipadamente garantir que não é nada menos recomendável do que o segundo.

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