sábado, 10 de fevereiro de 2018

O MISTÉRIO DA DESINDUSTRIALIZAÇÃO MANUFATUREIRA




(A queda do peso da indústria transformadora, mais precoce ou esperada, no emprego ou no produto totais das economias, pode considerar-se um tema recorrente da análise estrutural do crescimento e do desenvolvimento económico. O ressurgimento mediático do tema nos tempos mais recentes só tem uma explicação: o populismo económico não se dá bem dialogando com a investigação económica … )

Na literatura sobre a mudança estrutural das economias, o tema da desindustrialização, precoce, isto é desproporcionada face ao nível de desenvolvimento económico dos países, ou esperada, é algo de recorrente com que nos habituámos a lidar. Não é totalmente indiferente tratar o problema ao nível do produto do emprego e uma outra preocupação consiste em distinguir a desindustrialização absoluta (crescimento do produto e do emprego) e a desindustrialização relativa (peso do produto ou do emprego transformador no produto ou emprego totais, respetivamente). A explicação mais frequente gira em torno das condições de procura de bens da indústria transformadora. Comparativamente com os serviços, estamos a falar de bens que tendem a aumentar a procura face a aumentos de rendimento em menor proporção do que acontece nos serviços. Mas há que reconhecer que o tema é mais complexo, sobretudo com economias abertas. Só o relativo desinteresse com que a economia de mainstream olha para estas questões da mudança estrutural explica o não aprofundamento destas questões.

Mas subitamente o tema regressou ao debate económico. Não necessariamente pelas melhores razões, diga-se. A queda do emprego industrial é um tema politicamente reativo, tanto mais reativo quanto mais o fenómeno aconteça em territórios delimitados ou comunidades espaciais bem identificadas. A desindustrialização manufatureira tem sido um campo fértil, nos EUA de Trump sobretudo e em parte na Europa, particularmente na França de Le Pen, para o populismo e o nacionalismo económicos esgrimirem argumentos, como seria de esperar à revelia de investigação séria e rigorosa. A desindustrialização tem sido alvo de duas formas de reatividade política: contra a globalização e o comércio externo em particular e contra a automação mais ou menos robotizada.

Um efeito virtuoso do alarido populista e nacionalista tem sido o regresso de análises estruturais sobre o tema, seja cavalgando o tema da asiatização das economias (globalização, offshoring, outsourcing, importações chinesas e temas associados), seja seguindo os rumos e influência da tecnologia, ou ainda melhor procurando separar os dois efeitos. É neste quadro que não podemos deixar de registar neste espaço e no acompanhamento do tema a publicação pelo Upjohn Institute for Employment Research do artigo de Susan N. Houseman (link aqui), com um contributo marcante para o debate em curso. Embora seja o declínio do emprego manufatureiro que seja objeto de investigação, também não é menos verdade que foi o populismo de Trump que mais carregou no aproveitamento dessa evidência.

Seguem-se algumas breves notas para situar o alcance do artigo no quadro dos argumentos com que trabalhámos até agora.

Comecemos pelas evidências.

O emprego manufatureiro americano caiu de 2000 aos nossos dias cerca de 5 milhões, algo em torno de uma perda de 28%. Só de 2007 a 2016 essa queda está estimada em cerca de 1,5 milhões de postos de trabalho. Em termos de peso, o do emprego representava em 2016 apenas 10% do emprego total e o do produto cerca de 13% do produto total. O mistério adensa-se acompanhando a evolução do produto manufatureiro e do produto total. Em contraste com os indicadores de peso, o produto manufatureiro e o produto total têm mantido ritmos de crescimento similares, com a exceção dos tempos posteriores a 2007-2008 em que o crescimento do produto manufatureiro ficou aquém do do produto global.

Uma explicação possível para este mistério tem que ver com a evolução comparativa de preços. Os preços do setor manufatureiro teriam crescido a um ritmo mais baixo do que o preço do PIB global, refletindo a questão produtividade-automação.

A reflexão de Houseman começa a ser relevante a partir do momento em que questiona a relação produtividade-automação. E fá-lo por vários caminhos. Primeiro, não encontrando evidências sólidas de que a automação esteja a produzir os efeitos antecipados pela ficção. Segundo, colocando problemas de medida, bem mais interessantes e sugestivos. O aumento da produtividade da Indústria transformadora (IT) seria ilusório do ponto de vista do impacto na produção. Como os preços refletem essencialmente neste setor a rapidez do progresso técnico e da qualidade crescente dos produtos (computadores mais poderosos, televisões mais potentes, etc). Quando um consumidor aceita pagar mais 15% por um produto tecnologicamente mais moderno, estamos a empolar o valor da produção sem que isso se repercuta em mais produção física. É tudo uma questão de índices de preços ajustados pela crescente qualidade dos produtos. E terceiro, argumento ainda mais potente, estaremos a tomar a nuvem por Juno olhando para a IT como um todo. É que o efeito sobre os preços atrás assinalado desvanece-se se retirarmos da IT o setor eletrónico e da computação, que não representa mais do que 15% do valor acrescentado transformador nos EUA. Assim, por exemplo, sem essa componente de tecnologias de informação os preços da indústria transformadora e do PIB apresentam comportamentos similares. E em matéria de crescimento essa neutralização tem também um forte impacto. Com as TIC, o crescimento da IT é cerca de 97% da média do PIB privado. Sem as TIC é apenas 45%. Também sem as TIC, o produto real da IT era em 2016 mais baixo do que o registado antes da crise de 2007.

Moral da história

Houseman alerta-nos para um efeito ilusão. 15% do produto da IT revela-se afinal gerador de um efeito de distorção assinalável. O aumento da sua produtividade registaria o progressivo e persistente aumento da qualidade dos produtos impulsionada pelo progresso tecnológico. Assim, não só os americanos não estão a produzir mais computadores e semicondutores, mas antes menos (estão a fazê-lo no estrangeiro), como não é um problema de automação que comanda (ainda) a produtividade.

Dois importantes alertas resultam desta abordagem e por isso a considero muito relevante para o debate em curso.

Primeiro, na ânsia da formalização e da modelização a toda a brida, os economistas têm desvalorizado o problema da medida em tempos de rápido progresso técnico.

Segundo, os dados sugerem mais atenção aos temas da globalização e do comércio externo. Ou seja, os argumentos de Trump não podem ser tão facilmente contraditados. Aliás, o conhecidíssimo estudo de Autor, Dorn e Hanson (2013) sobre o efeito das importações chinesas concluía já que, entre 1990 e 2007, um quarto da queda do emprego manufatureiro estava relacionado com as importações chinesas. Isto só prova que os economistas não estão ainda totalmente robustos para contraditar o populismo económico. Para fazer referência a elementos que já passaram por este blogue, entre Houseman, Brad De Long e Dani Rodrik, por exemplo, não conseguimos encontrar um fio comum suscetível de contraditar o populismo de Trump. O que me deixa algo inquieto.

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