sexta-feira, 8 de outubro de 2021

LOS VENCEJOS

 

(O post de hoje é de ordem cultural e está focado nas minhas impressões com um livro em castelhano com que me tenho entretido nos últimos dias, que me traz de novo à prosa despojada mas impactante de Fernando Aramburu. Não é obra que recomende a homens em crise de existência a partir da meia idade, pois a estranha forma de posicionamento na vida do personagem Toni não é destino que queiramos associar nem a nós próprios, nem aos que conhecemos de perto, embora se compreenda o contexto. E muito menos a mulheres ciosas do seu estatuto, pois a relação do personagem com as mesmas está em contra-mão com os tempos de hoje).

Já reiterei neste espaço que a leitura do Pátria em castelhano foi das leituras mais marcantes dos últimos tempos, bem antes da passagem da série na HBO, das melhores coisas que vi em televisão, sobretudo pela contenção com que o conflito basco é entendido nesse conjunto inesquecível de episódios, de rostos, particularmente mulheres.

Foi a leitura do Pátria que me levou a obras anteriores de Aramburu e tenho de confessar que me fascina aquele estilo despojado, de preparação milimétrica, uma espécie de guia de leitura das cabeças mais complexas e dos comportamentos mais estranhos.


Ainda na sequência próxima da leitura do Pátria, Aramburu publicou em fascículos (onze) no El Mundo (link aqui e aqui) um conto de título Klaus, que em meu entender anunciava já novos rumos na produção literária do escritor basco radicado na Alemanha. O conto descreve a degradação do clima de relacionamento entre dois casais numa pequena cidade da Alemanha, à medida que Klaus um professor, literato e membro de um desses casais vê a sua saúde degradar-se progressivamente. É um conto perturbante e perturbador, não se digere facilmente. O mesmo se diga da obra que justifica o post de hoje.

Cerca de cinco anos depois do êxito fulgurante de Pátria, e pode dizer-se que ninguém escreveu assim com tanta distância e equilíbrio, sobre o conflito basco, Fernando Aramburu publica um longo romance, cerca de 700 páginas na edição da TUSQUETS em castelhano, com o título LOS VENCEJOS, através do qual regressa ao ambiente de Madrid e dos seus bairros inconfundíveis.

Primeiro problema foi perceber se LOS VENCEJOS eram andorinhas ou andorinhões. Percebi que é de andorinhões que se trata (os especialistas falam em três espécies, Andorinhão-preto, Andorinhão-pálido e Andorinhão-real), sendo estes voadores exímios um pouco maiores e um pouco mais escuros do que as andorinhas. Admito que a nossa memória de infância e atual sobre as andorinhas esteja misturada com imagens dos andorinhões, objeto da obra de Aramburu.

O romance com o qual ando às voltas, pois isto do castelhano para um leigo exige tempo e habituação de leitura, é perturbador, a começar pelo tema central do mesmo. Um professor cinquentão, desiludido com o mundo e com o seu lugar nesse mesmo mundo, decide acabar com a sua vida dando-se a ele próprio um ano para concretizar a sua decisão, anotando diariamente vários aspetos e dimensões, e personagens que com ele se cruzaram, até à data final, programada para o desenlace. Os relatos diários fazem-nos atravessar um mundo de acidez amarga e desiludida, muitas vezes sórdido e repulsivo e não vou entrar em pormenores, mas por vezes também entrecortados com momentos de profunda ternura.

Não é fácil compreender as razões de contexto que levaram Aramburu a escolher um registo que, após o êxito detonador do Pátria, o levaria inevitavelmente a atingir um número obviamente mais limitado de leitores, já que imagino muita gente desistirá com os primeiros assomos de repulsão e sordidez numa personagem que além de tudo é misógino. Há quem fale da influência do contexto também ele perturbador em que a Espanha vive neste momento. Compreende-se que LOS VENCEJOS são os personagens e também os ambientes que a vivacidade daqueles voadores proporciona são o que melhor pode contrastar com a acidez e amargura de um desiludido da vida e também não será por acaso que a ação decorre num bairro de Madrid, La Guindalera, onde o urbanismo não foi ainda contaminado, que o próprio Aramburu classifica como o patinho feio do bairro de Salamanca.

Numa magnífica entrevista ao El País (22 de agosto de 2021) (link aqui), encontro alguns elementos para compreender o contraponto entre o que Aramburu deseja para si e para o seu entorno e o produto do seu realismo de acompanhamento da profunda frustração do seu protagonista:

Ir contra tudo não ajuda muito. Sinto-me mais um estoico, aceito o destino perecível, mas aproveito o tempo e agradeço o que tenho. Não vivo a vida como uma angústia, abraço o estoicismo e não construo ilusões fundamentais, agradeço a existência e desfruto procurando não causar dano a ninguém. Aproveito-a assim. Pressuponho a boa norte e a serenidade, que é uma conquista cultural de primeira linha, como o sossego que identifico com isso. Essa violência soterradque sobressai nos Vencejos não a quero para nada em meu redor. Sei que existe por todo o lado, e pode ser que tenha escrito isto para advertir que ela está por aí. Mas rejeito-a.”

É relevante e em si mesmo muito sugestivo que Aramburu se tenha obrigado a contrapor a sua perceção de homem preocupado com o que se passa na Europa e em Madrid com a violência e amargura que o seu protagonista respira.

Mas melhor do que essa justificação de homem estoico, com experiência dura de vida familiar na sua terra natal é a sua descrição do papel e da dimensão simbólica que atribui aos andorinhões:

São um sinal de que a natureza conserva um certo equilíbrio. Um elemento diferenciador da cidade, dá-lhe um caráter de rebanho e dissolução, que fazemos nós aqui por baixo? O mesmo que eles, ir e vir, cruzarmo-nos. Suponho além do mais que estes andarinhões do meu romance são madrilenos, uns pássaros urbanos, de certo nível cultural, que se empoleiram nas tertúlias para ver o que podem pilhar. Contagiam euforia, fazem bem como as andorinhas, chegam com a primavera, anunciam algo luminoso e quando partem já sabemos que chega o frio.”

 

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