sábado, 16 de outubro de 2021

INTERPRETANDO AS FRICÇÕES EUA-CHINA

 

                                        (The Reshoring Index)

(A bravata de Donald Trump trouxe ao discurso político americano o tema das fricções comerciais, e não só com a China, as quais não desapareceram com a chega de Biden ao poder. É tempo de perceber se essas bravatas discursivas são apenas isso ou se, pelo contrário, estamos a assumir a mudanças estruturais no comércio externo americano e no seu lugar na divisão internacional do trabalho. E, finalmente, começa a estar disponível informação para responder a essa questão.)

O belicismo retórico de Trump chegou na altura a ser interpretado como indicador de algo de mais vasto que estaria a acontecer no posicionamento económico dos EUA face ao mundo. Na verdade, não era nada de transcendente pensar nessa interpretação, já que da parte política se percebia que os EUA se preparavam para um outro ciclo. Se assim era, porque não isso acontecer também quanto ao posicionamento económico?

Discutiu-se então se não estaríamos prestes a assistir a uma transição de um mundo de “offshoring”, com crescente internacionalização da produção americana feita não a partir do território americano mas via investimento direto estrangeiro noutros países, para um outro de “reshoring”, com progressivo regresso do capital americano a investimentos no território nacional.

Entre a informação disponível para responder a esta questão, o chamado Relatório Kearney (link aqui) constitui a referência mais sólida, já que a publicação do Relatório é sempre acompanhada pela monitorização do Índice de Reshoring, que procura medir a tendência para os produtores americanos preferirem ou não o território americano como fonte de produção para abastecer a procura interna. Obviamente que os tempos não são fáceis para interpretar o andamento deste índice e não faltam razões para tal:

  • O facto da pandemia ter eclodido a partir da China teve imediatamente influência na intensidade dos fluxos de importações americanas a partir da China, bravatas discursivas à parte;
  • Depois, o forte impacto pandémico nos EUA impactou naturalmente a capacidade de produção no território americano, abrindo caminho a importações da China e de outros países asiáticos para satisfazer a procura interna.

Veja-se, nesse sentido, a forte oscilação do índice entre 2019 e 2020, refletindo essas difíceis condições de interpretação.

No entanto, há um número que é largamente ignorado neste debate e que de certo modo sugere que, mesmo positiva, uma eventual tendência para o “reshoring” tem um impacto na economia americana mais esbatido do que a bravata discursiva de Trump anunciava.

 

O gráfico acima mostra que a importação de produtos manufaturados pela economia americana em percentagem da produção interna, embora ascendente de 2008 até aos nossos dias, fica-se ainda por uma percentagem relativamente baixa, em torno dos 13%. O que sugere que do ponto de vista da mudança estrutural da economia americana talvez seja mais relevante seguir o padrão de evolução das suas exportações.

Um outro aspeto é o do significado do comportamento das importações americanas provenientes da China. A pergunta inevitável é a de saber se o seu recuo é uma consequência das fricções políticas e das tais bravatas discursivas que apontam para tempos de reshoring? Porque seria perfeitamente lógico que a economia americana busque uma maior diversificação das suas importações, não só na sequência do agravamento das tensões políticas entre os dois países, mas também por critérios de segurança de abastecimento em tempo de pandemia. Existe de facto uma queda do valor global das importações provenientes da China, mas provavelmente haverá outros efeitos estruturais a ter em conta.

O gráfico apresentado pelo Relatório Kearney de 2020 sugere algo de mais estrutural que possa estar a acontecer. Entre 2013 e 2020, é claro e relevante o desvio entre o crescimento das exportações do Vietname e da China para os EUA, que se cava ainda antes da incidência pandémica.

O que é que de mais estrutural o gráfico nos mostra? Mostra-nos muito provavelmente que, devido ao comportamento salarial na China e à diversificação das suas exportações para bens de maior incorporação tecnológica, o Vietname esteja a aproveitar para ganhar presença em importações americanas até antes ocupadas pela China. Sabe-se, aliás, que grandes multinacionais do tipo Nike ou Adidas estão a relocalizar as suas fábricas da China para o Vietname. Reagindo ao discurso político? Não, apenas adaptando o seu IDE à mudança estrutural dos países de implantação. É assim, de facto, que a divisão internacional do trabalho evolui, por ondas ou vagas de países em função das vantagens comparativas que podem oferecer. Ou seja, quando um grupo de países avança na sua estrutura de exportação e explora oportunidades de exportações com maior incorporação tecnológica e maior produtividade cede espaço a outros emergentes que vão ocupando esse espaço. Obviamente que isso não significa que as bravatas discursivas não acabem por produzir efeitos. Mas as condições de evolução estrutural da divisão internacional do trabalho não deixam de estar presentes.

É nesse contexto que o Relatório Kearney nos dota de uma outra sigla para que possamos compreender as nuances da transição do offshoring para o reshoring, este bem menos pujante do que o discurso político poderia fazer crer.

Os novos vocábulos são o “near shoring” e o “right-shoring”. O primeiro surge nas empresas americanas que optam por um offshoring de proximidade, Canadá e México, por exemplo. Já o right-shoring o que quer significar são decisões de localização externa mais complexas e elaboradas para integrar um universo mais vasto de condições de acolhimento favorável para o IDE.

A divisão internacional do trabalho não para de nos surpreender, isto se o protecionismo não regressar com a sua carga de arbitrariedade e, frequentemente, de irracionalidade.

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