(Tal como hoje o Público, nas suas primeiras páginas, link aqui, o documenta, o centro-esquerda vive por estes dias alguns sinais de esperança de contraponto à polarização que o submergiu nos últimos tempos, sobretudo a partir dos resultados das eleições alemãs do passado dia 26 de setembro. Não quero ser desmancha prazeres, até porque esses sinais obviamente me agradaram. Mas olhando para a social-democracia sueca e a sua evolução nos tempos recentes, estou mais próximo de Cohn-Bendit quando ele afirma que a social-democracia está num limbo à procura de uma nova configuração para os tempos em que estamos mergulhados. A leitura de um artigo de Göran Theborn na velhinha New Left Review conduziu-me a estes pensamentos).
Se retirarmos do mapa ilustrações de social-democracia/socialismo como o dos Países-Baixos que não interessam nem ao Menino Jesus, que sempre achei que seria social-democrata, as eleições alemãs com o ressurgimento do SPD trouxeram alguma esperança às hostes. Claro que a vitória por alguns pelos do SPD é relativamente ensombrada por um candidato a Chanceler tudo menos entusiasmante (mas os alemães parecem gostar de gente que mais do que grandes rasgos ideológicos lhes assegure a estabilidade das pensões), forjado na sombra da Senhora Merkel. Mas, pelo contrário, a aparente inclinação dos Verdes e dos Liberais para se coligarem com acordo de governação com o SPD e não com a CDU, esta última a precisar de um novo motor de combustão com menos emissões, parece querer dizer que o centro-esquerda regressará à governação, sujeitando-se ao escrutínio futuro. São bons sinais. Foram-no também as recentes eleições locais em Itália, em que o centro-esquerda ganhou em toda a linhas nas principais cidades italianas, capitalizando a extrema divisão dos amigos de Salvini. E o que parece mais interessante ainda é o facto de já não parecer uma inevitabilidade a presença da extrema-direita na governação, o que aliás foi favorecido por São Draghi (em passo acelerado para a canonização) e pela súbita visão divina que se terá apresentado a Beppe Grillo do 5 Estrelas.
Assim sendo, podem questionar-me que raio de justificação haverá para um post a contravapor desses sinais positivos?
Leituras meus amigos, é a resposta.
Por uma via-convite de que já não me recordo, regressei à já velhinha New Left Review, que está vivinha da Silva e se recomenda, para integrar um excelente artigo sobre os ventos de algum declínio da social-democracia sueca. Este interesse pela social-democracia sueca ou pelo socialismo à escandinava tem profundas raízes nos meus interesses. Afinal, a Suécia e demais são o único exemplo que economistas da inovação como eu têm para apresentar de modelos em que a profundidade e cobertura do Estado Social se combinam virtuosamente com uma dinâmica intensa de inovação e de Sistemas Nacionais de Inovação pujantes e bem articulados. Mas há um outro motivo. Nos meus trabalhos com a minha colega, agora também retirada da FEP, Pilar González, para a International Labour Organisation (ILO de Genebra) sobre a evolução do modelo social europeu e crise das classes médias[1], o nosso colega Dominique Anxo, responsável pela análise sobre o modelo sueco, já nos tinha dado conta de que a desigualdade estava a emergir na sociedade sueca, sugerindo que mesmo no âmago do modelo social mais avançado o fenómeno tinha de ser estudado.
O artigo de Göran Theborn (link aqui) é excelente e documenta toda essa realidade evolutiva. É, por isso, um contravapor justificado, até porque os modelos de centro-esquerda como o que vigora em Portugal estão perante o mesmo tipo de desafios. Estamos curiosos se a eventual governação do SPD alemã trará alguma experimentação que valha a pena e que abra caminhos de futuro.
A progressiva queda eleitoral a que o Partido Social Democrata sueco (o SAP) está submetido mede-se pela passagem de tempos em que valia 40-45% do eleitorado sueco aos tempos de hoje em que se fica pelos 28%. Esta queda progressiva é indissociável da participação ativa dos sociais-democratas no que Theborn designa de contrarreforma socioeconómica inspirada pelas teses de liberalização da economia, pretensamente para fazer face aos problemas de competitividade da economia sueca, com ampla desregulação dos mercados de crédito e de capitais, descida de impostos de sucessão, sobre a riqueza, propriedade, capital e restrições no acesso aos apoios sociais com exigências de demonstração de recursos (means-tested). Os efeitos anunciados desta inversão da política dos sociais-democratas não se fizeram tardar: o coeficiente de Gini começou a trepar, o rendimento médio dos 0,1% mais ricos subiu para 38 vezes o do rendimento médio mediano e em fins da década de 2010 o 1% mais rico possuía 42% da riqueza nacional.
Ou seja, ao contrário do que seria de esperar, mas por vontade própria dos seus promotores, a social-democracia sueca não revelou a resistência esperada aos rumos da polarização do mundo pós-industrial, globalizado e financeirizado, dando lugar a uma divulgação progressiva dos princípios da ideologia própria de uma burguesia de elite. E o que é mais grave o SAP também não ficou imune à conhecida narrativa de que todos os problemas resultam da ameaça da imigração, convergindo por essa via com os restantes partidos de direita moderada. Os movimentos racistas e xenófobos começaram entretanto a ganhar expressão, minando a experiência exemplar dos suecos no acolhimento de refugiados e migrantes, estimando-se que 40-50% do eleitorado (cerca de 8% da população total) possa ser considerada racista ou xenófoba, mesmo que a taxa d emprego de pessoas estrangeiras permaneça em torno dos 80%.
Subjacente a todas estas mudanças, perfila-se um conjunto de características comuns a outras realidades, tais como a perda de peso dos trabalhadores industriais e com isso a força do movimento sindical, apesar de cerca de 60% dos trabalhadores manuais e 73% dos serviços estarem sindicalizados.
Para já o SAP enfrenta ainda uma concorrência não muito forte do Partido da Esquerda Sueca que não chega a valer 10% do eleitorado, ligeiramente acima nas três cidades mais importantes.
Theborn entende, e acho que pensa bem, que uma nova dinâmica poderá acontecer a partir de uma certa agitação da tríade SAP, Partido da Esquerda e Verdes no sentido de atrair a atenção e o apoio de eleitores progressistas desiludidos com o rumo da política nacional. Ora, se o SAP continuar ele próprio a alimentar as hostes da contra-reforma que já deu provas de ser mais do mesmo, essa agitação será impossível. O autor do artigo refere que a Suécia parte de uma situação favorável, as suas classes médias ainda estão fortemente sindicalizadas, o que tenderá a favorecer novos valores em torno da dignidade e da decência do trabalho, contra o monopsónio da procura de trabalho.
Por isso, a afirmação de Daniel Cohn-Bendit de que “Ainda não existe uma nova definição sobre o que é que pode ser a social-democracia no mundo de hoje” me parece bem sensata. E isto é o que eu chamo um sinal dos tempos: quando um velho radical se diferencia pela sensatez, algo está a mudar.
[1] Daniel Vaughan-Whitehead (coordenador) – Europe’s Disappearing Middle Class? – Evidence from the World of Work, 2016, ILO – Edward Elgar, Londres
Sem comentários:
Enviar um comentário