(Dança das sombras)
(O João Godinho tem na Antena 2 um programa curioso, Pausa para Dançar, que é uma forma inteligente de divulgar a música erudita. Ocorreu-me essa metáfora para comentar esta característica tão nacional de forjar caminhadas para o abismo, acelerando inexplicavelmente o tempo político. E o problema é que, dada a recorrência e o déjà vu de tantas destas peripécias, é praticamente impossível ser original no comentário político. Ensaiemos.)
A minha posição continua a ser marcada por um conjunto de princípios e ideias concretas que tenho enunciado de tempos a tempos neste espaço.
Primeiro, após a tenebrosa experiência Troikista de gestão da crise das dívidas soberanas, a formação de um processo de aproximação e concertação política à esquerda, envolvendo PS, PCP e Bloco de Esquerda, que ficou designado pelo termo geringonça (é curioso que a metáfora usada em Espanha para a aproximação PSOE-PODEMOS foi Frankenstein), constitui em meu entender uma solução ajustada à necessidade histórica de reorientação para o centro-esquerda. Como tenho referido, isso não equivale a dizer que o PS tenha perdido o seu estatuto de charneira política em Portugal. E também não significa que a solução não tenha inconvenientes, fortes inconvenientes. Mas as soluções políticas de governação têm de ser entendidas nas condições concretas e orientações que decorrem do comportamento dos eleitores. Essa é a forma básica da democracia. Os eleitores escolhem os representantes que, em seu nome, governarão, o que também implica a sua responsibilização pelos resultados eleitorais.
Segundo, ao contrário de outras leituras, defendo que a fórmula da geringonça não estava esgotada e que constituiu um enorme erro político as três forças políticas se desligarem da tipologia de acordo que as vinculava, admitindo até que prosseguiria o modelo de dois acordos, PS-PCP e PS- Bloco de Esquerda. Por oscilação política excessiva de António Costa que muitas vezes falou de mais, cavando irreversibilidades desnecessárias, pelo erro profundo de leitura histórica do PCP que julga que são os acordos de governação a razão do seu declínio eleitoral e pela crise de maioridade que o Bloco apresenta, incomodado com o meter a massa nas ideias de governação, a decisão clara do eleitorado de manter uma maioria à esquerda, reafirmada na surpresa de Lisboa, não encontrou nesta legislatura a sua expressão política mais adequada.
Terceiro, António Costa e atrás dele praticamente todo o PS, confundiram a importância histórica do recentramento à esquerda com o estatuto estrutural do PS como charneira política. Foi idiota a hostilização precoce do PSD de Rui Rio, aliás profundamente desnecessária. António Costa só teria de enunciar a urgência do tempo histórico pós gestão Troikista e reafirmar que aguardava a clarificação políticas das ideias no PSD, nunca de modo algum fechar a porta a aproximações políticas futuras acaso a dinâmica política o aconselhasse. Aliás, Costa conhece bem a rigidez de ideias de Rio e a necessidade de lhe proporcionar algum tempo para que este se sobreponha à sua rigidez.
Todos estes elementos se abatem sobre a dança errática e algo macabra do Orçamento. Negociar orçamentos sem acordos políticos claros que enquadrem essa negociação é um convite à gritaria de que fala Susana Peralta e a um jogo de sombras que tem origem a meu ver na própria degradação do que se consegue com um Orçamento de Estado do tipo que foi apresentado e aprovado nos últimos anos. O Orçamento é cada vez mais tático e menos estratégico, já para não falar do banquete estilo La Grande Bouffe em que se transformou a discussão na especialidade, com tudo o que é de contranatura a emergir em termos de votação de alterações. Por ouro lado, a desvalorização da Conta Pública anual, ou seja o que foi efetivamente gasto e recebido, faz com que se perca a oportunidade de se discutir o orçamento de um dado ano comparando o orçamento do ano anterior com a sua execução efetiva, o que seria manifestamente mais transparente do que a dança de sombras em que tudo isto se transformou.
Para lá destes pontos, a discussão anual do Orçamento é sempre feita num ambiente de grande e cínica hipocrisia. São assim largamente ignoradas algumas limitações que vale a pena recordar. Primeiro, as forças da inércia que se movimentam no quadro do convencimento de que não há Orçamentos zero. Recordo que muitos Ministros se deram mal com a imposição de normas do tipo orçamento zero, ou seja, orçamentem de modo a justificar as razões porque existem e não como se essa existência esteja assegurada à partida. Tentaram uma vez, mas arrependeram-se. Segundo, a ideia de orçamentos com quadros plurianuais bem claros também foi rapidamente abandonada e nada transpirou sobre grupos de trabalho criados por alguns ministros, como por exemplo o amigo Teixeira dos Santos. Terceiro, a nossa adição em termos de Fundos Europeus introduz uma tremenda rigidez já que as contrapartidas nacionais têm de estar asseguradas. Ora a lógica da programação europeia não se confunde com a nacional e por isso no Orçamento surgem essas diferenças como uma manifestação de rigidez. Quarto, as práticas enraizadas de gestão orçamental a cargo dos Ministros das Finanças, vulgo cativações, geram obviamente efeitos perversos na preparação do mesmo, adensando o jogo de sombras. Quinto, penso que se exagera no potencial dos orçamentos refletirem o impacto das estratégias de desenvolvimento para o país, dada a ausência de referenciais plurianuais e o peso do que é corrente. Sexto e não menos importante, e aí Susana Peralta tem carradas de razão no Público de hoje, toda a legislação de enquadramento orçamental tem sido desvalorizada, para não dizer ignorada e adulterada e isso é um indicador do estado a que as coisas chegaram.
Sendo assim, seria de todo conveniente que, num quadro de alguma plurianualidade, não digo necessariamente de uma legislatura, mas podendo envolver períodos intervalares, todos os orçamentos e a sua discussão fossem enquadrados por um documento de opções estratégicas e políticas. Esse documento seria a base dos acordos políticos para a sua aprovação, permitiria integrar matérias que não são declaradamente do foro orçamental (como parece ser a direção para que está a evoluir a aproximação de António Costa à esquerda) e disciplinaria a clareza com que cada força política se posiciona na discussão orçamental. Esse documento-preâmbulo permitiria destacar o que é efetivamente novidade estratégica no Orçamento, facilitando a sua leitura e incrementando de forma substancial a sua transparência e informação de cidadania.
Para memória futura do que poderei escrever a propósito de um próximo Orçamento, com discussão mais ou menos assanhada.
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