domingo, 24 de outubro de 2021

A TAP E A CRISE DE LEGITIMAÇÃO DO GOVERNO

 

(Independentemente de não ter qualquer palpite qual vai ser o desfecho da negociação do Orçamento, o que não significa ignorar que o seu chumbo pela esquerda parlamentar constituirá um erro histórico daqueles incomensuráveis e que só a história de longo prazo permitirá compreender, a imprensa do fim de semana e toda a corte de comentadores e analistas já internalizou que haverá eleições a curto prazo. Isso é tão claro que muita dessa turba já abandonou o argumento dos efeitos nefastos de uma crise política no início de uma dupla nova programação e se rendeu à inevitabilidade, procurando racionalizá-la. Mas de todos os artigos e comentários que li durante o fim de semana, o que achei mais direto e sugestivo é o de Daniel Deusdado no Diário de Notícias. Explico porquê.)

O artigo chama-se curiosamente “PSD e TAP, TAP-TAP TAPTAPTAPTAPTAP” (link aqui).

A prosa jornalística de Daniel Deusdado sem se distinguir pelo seu grau de elaboração de ideias ou densidade de argumentação é, por regra, muito linear e objetiva na ideia central que pretende transmitir, indo direita ao assunto, sem grandes divagações ou intermezzos. No comentário político aprecio bastante esse tom direto.

A tese do artigo é sugestiva: “Espremida, a crise política centrar-se-á na TAP. A campanha eleitoral desaguará ali. Porque a TAP pesa”. Ou seja, “E aqui chegados, sobra então a questão para o Bloco de Esquerda e PCP: derrubar o Governo é coerente? É. E o resultado prático será...? Deixo o meu contributo: a TAP. Jerónimo de Sousa e Catarina Martins assinarão o fim da companhia. Ou, repetindo o título do texto que escrevi em Julho de 2020, "A TAP é o princípio do fim de António Costa".

Bem-intencionado e armado em defensor do orgulho nacional numa “companhia de bandeira” que já há muito tempo não o é, e apoiado por um coro de conselheiros ou de alcoviteiros de ideias que apregoaram aos quatro ventos o interesse estratégico de termos uma companhia de bandeira e numa não demonstrada ideia de que a TAP é o instrumento-chave da nossa internacionalização, António Costa, o seu ministro Pedro Nuno Santos e o PS terão cometido um erro histórico. Esse erro resultou tão só de excesso de otimismo quanto ao interesse estratégico da companhia no seu estado da arte atual, de total falta de atenção face ao destino de outras companhias de bandeira de países bem mais robustos económica e financeiramente do que Portugal, de imprevidência face ao estado previsível do transporte aéreo e de uma perceção do valor da TAP construído a partir de uma perceção elaborada a partir da capital.

Ziguezagueando quanto baste em relação ao seu modelo de participação na empresa, a TAP vai-se transformar numa pedra no sapato insuportável no próximo tempo político à medida que se for compreendendo que o restará da TAP não compensará o enorme esforço de alocação de recursos públicos que lhe vai estar associado. Sempre me preocupou mais a ruinosa privatização da ANA e das infraestruturas aeroportuárias do que termos ou não termos uma companhia de bandeira. Por mais estranho que isso nos possa parecer, o desaparecimento da TAP é provavelmente um não problema para uma parte substancial do eleitorado nacional, pelo que o caminho seguido se não é suicida anda por lá perto.

É tudo uma escolha de escolhas públicas e por mais assanhados que sejam os seus defensores a TAP é uma má escolha pública, atendendo sobretudo ao quadro imenso de outras escolhas públicas que poderiam estar na balança. E não vejo qualquer contradição entre ter sempre assumido esta posição e a minha aprovação da viabilização da atual governação à esquerda do Parlamento.

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