sábado, 30 de outubro de 2021

PARADOXO

 

                                                    (New York Times)

(A imagem que abre este post fui buscá-la com a devida vénia ao New York Times que a utiliza para enquadrar a crónica de Paul Krugman que também fornece algumas achas para o tema. Mas paradoxo porquê? Paradoxo porque o mundo vive um momento de auge tecnológico, seja visto sob o prisma da chamada Indústria 4.0, seja sob a perspetiva mais lata da transformação digital mais global e apesar disso enfrenta fenómenos de escassez e de quebras de abastecimento que lembram outros tempos, de mais baixo orgulho tecnológico. Como já o referi neste espaço, a clivagem fenómenos temporários versus problemas que persistirão no futuro já não parece ser o contexto mais favorável para se ir além do paradoxo. O que talvez tenhamos pela frente não é uma falha tecnológica mas talvez antes um problema de governação à escala global e se assim acontecer a questão pia mais fino.

O objetivo do artigo de Krugman (link aqui) é obviamente situar-se no contexto político americano de momento onde a entrada de leão de Joe Biden se vê agora a braços com problemas de oferta que não resultam de áreas de jurisdição nem nacionais nem muito menos de interferência possível direta do Presidente americano. E a questão mais dolorosa é que Trump está aí de novo a procurar capitalizar esta quebra de fornecimentos e sobretudo de complicações energéticas (essencialmente de gás) com reflexos na vida dos americanos. Se no Reino Unido uma deficiente preparação logística, incluindo a de recursos humanos para o pós-Brexit, terá exacerbado problemas de défices de oferta, particularmente de combustíveis, a economia americana está longe de acusar a mesma gravidade de situações.

Mas a situação transforma-se em caldo favorável ao discurso populista. Todas as evidências disponíveis apontam para problemas de perturbação de cadeias de valor globais, portanto do foro íntimo da economia mundial enquanto tal e para problemas na formação de preços a essa escala, como parece ser por exemplo o exemplo da energia e particularmente do preço do gás natural. Porém, embora do foro global, a verdade é que as consequências de tais perturbações se projetam nos planos nacionais e aí os populismos encontram campo fértil.

E estamos obviamente enredados no problema de sempre. A globalização evoluiu e procurou a vida do aprofundamento da integração económica, mas as políticas económicas permaneceram ancoradas na esfera de influência do velho e perturbado Estado-nação. Para mais, como sucede hoje em dia, quando algum dos mecanismos de que se alimenta a economia global os seus efeitos projetam-se na escala do dia a dia e, de repente, tudo parece deixar de ser global para afinal ter uma existência nacional/local.

Ontem, na linha do que António Guerreiro sublinhava com subtileza no ÍPSILON, mencionei que poderíamos viver um tempo estranho de objetivamente ninguém poder datar o pós-COVID e, simultaneamente, o comportamento de consumo e despesa após os desconfinamentos ter ultrapassado níveis anteriores ao início da pandemia e processos de confinamento e estar a demorar mais do que o esperado para regressar a esses níveis.

Se a recuperação após a crise de 2007-2008 foi agónica e longe de ser sustentada, a recuperação pandémica, para além de não a podermos datar com facilidade, é pelo menos estranha e levanta o espantalho da inflação. Para já os que se apressaram a reconhecer aqui um caso de “estagflação” do tipo da observada nos anos 70, com inflação e desemprego, a comparação parece ter sido precipitada. Alguns fenómenos de escassez de mão-de-obra estarão a manifestar-se nos mercados de trabalho, provavelmente alimentados pelo facto da economia do trabalho não ter no tempo recente qualquer exemplo comparativo de recuperação de uma pandemia devastadora que atingiu o mundo e que atingiu por estes os 5 milhões de mortes oficialmente declaradas como causadas pelo COVID. O fenómeno do desencorajamento do regresso ao mercado de trabalho induzido pelo confinamento e até o abandono precoce de alguns grupos etários mais velhos poderão estar a fazer-se sentir. Claro que essas manifestações de escassez de mão-de-obra e as roturas de oferta mundial em alguns domínios-chave para a economia mundial claro que são preocupantes do ponto de vista do efeito de propagação e reprodução de tensões inflacionistas. Daí eu falar de uma recuperação estranha, que coloca aos bancos centrais fortes exigências de sensibilidade, pois não estamos perante um caso normal de sobreaquecimento económico.

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