(A China e o que por lá se passa em matéria de política económica e de capitalismo autoritário-repressivo representam o que de mais sugestivo há para estudar do ponto de vista das variedades da evolução do capitalismo global. E não é tanto pelos conflitos que a sua emergência vai gerando com o mundo global, veja-se o posicionamento conjunto dos EUA, do Reino Unido e da Austrália para lhe fazer face, que tanto irritou Macron e os Europeus, a Alemanha é uma exceção. A evolução interna é em si própria um ponto de contínuo e renovado interesse. Regista-se aqui, tal como noutras ocasiões, o valioso contributo de Branko Milanovic, atenção à nova obra que está na forja depois do Capitalism Alone, para compreendermos tal evolução com lentes de qualidade).
Entre tudo o que tenho lido nos últimos tempos sobre este ponto focal da evolução do capitalismo global, destaco um parágrafo de Branko Milanovic que em meu entender descreve com brevidade e rigor o que de mais essencial o modelo chinês trouxe às variedades do capitalismo global:
“O capitalismo Chinês pode ser visto como uma longa NEP, Nova Política Económica – que pode prolongar-se por um século – na qual é dada mão livre aos capitalistas em praticamente todas as áreas da economia, mas em que os comandos superiores da economia são reservados ao Estado e o poder político não é partilhado com ninguém.”
(In Branko Milanovic, “The long NEP, China and Xi”, Global Inequality blog, 3 de Agosto de 2021, link aqui)
Uma ponta de saudade nostálgica passa por mim relembrando tempos idos a estudar os textos da NEP dos tempos de Lenine, sim também andei por essas fontes bibliográficas. Mas o parágrafo de Milanovic é de grande alcance e ajuda-nos a compreender a força relativamente imbatível do modelo, que está sobretudo na capacidade de combinar um modelo económico de grande dinamismo com as ferramentas do autoritarismo-repressivo que, como sabemos, não se limita aos comandos superiores da economia. Outros modelos autoritário-repressivos existem por essa desordenada economia mundial. Mas nenhum deles têm à sua disposição um dinamismo económico similar ou próximo ao do chinês.
O que é curioso é que o interesse aprofundado de Milanovic pelo estudo do modelo chinês tem raízes na sua investigação sobre o comportamento da distribuição do rendimento nas economias que são motores da economia mundial e também da distribuição à escala mundial, centrada sobretudo na emergência de uma nova classe média gerada no desenvolvimento económico dos países emergentes.
E, nesta matéria, a evolução da desigualdade da distribuição do rendimento na China é por si só esclarecedora das alterações observadas no modelo (veja-se o gráfico que abre este texto).
As grandes alterações no modelo económico datam dos fins dos anos 70, por volta de 1978, em que se registam as primeiras reformas e o início da privatização da terra. Nessa altura, o índice de desigualdade na distribuição do rendimento na China (coeficiente de Gini, variando entre 0 e 1, com 0 equidade máxima e 1 desigualdade máxima) tinha valores escandinavos. Era igual a 0.28. Hoje, depois da dinâmica de mercado favorecida por tais reformas, o mesmo índice é do tipo latino-americano, com valor igual a 0.47, próximo do Brasil e da África do Sul. O que é curioso é que por processos e mecanismos diferentes, a evolução da desigualdade nos EUA anda pelo mesmo padrão. Ou seja, a China navega pelas mesmas águas de evolução do capitalismo mundial avançado, com a desigualdade em crescendo. E, em termos não facilmente replicáveis, esse crescendo da desigualdade pode ser descrito pela ideia do bolo que cresce muitíssimo, do qual a fatia dos mais ricos vai crescendo quase inexoravelmente. Claro que neste processo há muito de mudança estrutural muito tipificada na literatura: êxodo demográfico intenso da agricultura para a indústria e depois para os serviços e urbanização associada, mas o valor de 0.47 do Gini já é mais do que isso, é a apropriação por parte de poucos de um processo notável de crescimento. E, além disso, coloca o gap urbano-rural em limiares nunca antes vistos (2 para 1 em termos de rendimento) e do ponto de vista territorial a palavra coesão começa a soar nos ouvidos das autoridades chinesas.
Milanovic mostra em artigo mais recente (link aqui) que essa profunda alteração nos equilíbrios da sociedade chinesa e do seu imenso território é concretizada com evidências inequívocas de profunda insatisfação da sua população, que o regime autoritário-repressivo trata à sua maneira. Mesmo assim, dados de Milanovic, o INE lá do sítio registava, em 2020, 300.000 casos de perturbação por manifestações em espaço público, ditadas por essa insatisfação, sobretudo por processos de expropriação de terra que, já se sabe, fazem afluir rendimento a um grupo muito particular de agentes. Descontando a ocultação assegurada pelo modelo autoritário-repressivo, percebe-se que a dimensão do protesto já não pode ser ignorada, até porque o poder político chinês tem informação de que a mobilidade social ascendente na China é já baixa e estancou nos últimos tempos.
A grande interrogação está em saber se o regime autoritário-repressivo forte para combater veleidades de ameaça ao poder político terá capacidade de usar o seu poder de comando superior da economia para combater os pontos de concentração mais ou menos monopolista que se formaram entretanto e que estão por detrás dos 0.47 do índice de GINI. Não só por via do investimento público central, mas atingindo o próprio coração dessa concentração, incluindo leis anticorrupção, esse controlo da desigualdade definirá em grande medida o curso da tal longa NEP de que fala Milanovic.
E não pode deixar de se refletir sobre a intuição revelada pelo economista sérvio. Afinal, de candeias às avessas e com modelos internos profundamente díspares, China e EUA estão mergulhados numa espécie de luta comum pela redução da desigualdade a que os mecanismos mais ínvios dos seus próprios modelos os conduziram, tão próximos são os seus Ginis atuais.
Apetece dizer, “e esta hein?”
Sem comentários:
Enviar um comentário