(Cemitérios no horizonte, chuva miudinha e persistente que nos envolve, humedece e também relaxa, regresso ao ninho depois de alguns dias em Lisboa, condições imbatíveis para uma tarde de leitura e música, muita música. Martha Argerich Raconte é uma feliz digressão de Olivier Bellamy por entrevistas com a minha diva pianista, pequenas preciosidades para entender o contexto que a rodeia aos oitenta anos, nós sempre com o temor de um percalço qualquer que precipite o fim de uma carreira que queremos ainda mais longa para o prazer dos nossos ouvidos. É um livro diferente, coligido por alguém que conhece há longo tempo a pianista e que é aliás o autor da célebre biografia de Argerich, datada de 2011, mas que é uma preciosa ajuda para contextualizarmos o que representa aquela vida para muita gente.
Martha Argerich Raconte (edição Buchet-Castel de 2021 tal como o já foi a biografia “Martha Argerich l’enfant et les sortilèges” de 2011) é uma digressão leve e até divertida de entrevistas de há pelo menos dezassete anos até ao presente, conduzida pelo escritor/jornalista com trabalho para o Le Monde. Pelo contexto das entrevistas pode perceber-se o temor do jornalista perante os diferentes momentos de aproximação à diva, mas também inúmeros traços de comportamento, de proximidades e cumplicidades da pianista, que nos ajudam a perceber melhor a sua maneira ímpar de construir uma carreira, com muita gente em seu redor.
Recolho um pouco aleatoriamente algumas passagens do livro que permitem compreender o fascínio de Bellamy pela pianista, que me atrevo a traduzir do francês para português, embora pressinta que vou deixar cair muito do encanto das palavras na versão original.
Logo no começo:
“Se Martha não tivesse tocado uma nota de piano que seja ao longo da sua vida, seria exatamente a mesma: espírito vivo e corpo com relutância em mexer-se, olhos de estátua etrusca, perfil de gamo. E que posição de cabeça! Cabelos de rainha assíria, cabeleira de cigana, juba de druida, ar de vidente da boa aventura. Diamante não esculpido, monumento coberto de amoras e ervas loucas, barco com a popa assoreada e a proa fulgurante de brilho, criança aborrecida, lutadora não violenta, caçarola com leite ao fogo, zeladora firme do seu espaço donde exalam perfumes desconhecidos, arco íris sorrindo para as nuvens, adolescente que desperta subitamente com um riso metálico, que bebe café e mais café, cola mais cola, eterna estrangeira que permanece, o que quer que faça, o centro de todos os olhares e de todas as atenções”.
E mais para o fim:
“(…) Porquê fazer os impossíveis para obter um bilhete para um concerto? Porquê a espera para perceber a sua presença, para a ver alguns segundos ou passar algum tempo com ela? Porquê todas estas noites à procura do sono antes e depois esse acontecimento?
Não há uma resposta simples. Não se trata apenas de ouvir boa música para tentar prolongar esse instante delicioso por todos os meios. A razão é que Martha Argerich é um desses seres raros que estão em ligação com o intangível, o indescritível, a origem e o fim de qualquer coisa”.
Diria que quem escreve assim está vidrado pela personagem.
Mas o Martha Argerich Raconte é muito mais do que o fascínio do entrevistador pela entrevistada. É também a oportunidade para compreender as afinidades com os amigos de todos os dias, Nelson Freire, Daniel Barenboim, as filhas, os jovens dos encontros de Lugano, os grandes Amores e a veneração pelos grandes compositores que interpreta, Beethoven na frente, Schumman e outros.
A tarde desliza fluida pela leitura.
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