segunda-feira, 18 de outubro de 2021

UM BANHO DE REALISMO

 


(Enquanto o País continuará esta semana suspenso de saber se a racionalidade política se sobreporá ou não à mais incompreensível irracionalidade, talvez valha a pena levar uns banhos de realismo e refletir sobre as condições de enquadramento europeu imediato que teremos de gerir. Uma entrevista e uma crónica, ambas recentes, dão o mote. Valem a pena.)

De que materiais estamos a falar?

A entrevista é dada ao Der Spiegel por Klaus Regling, Diretor do Mecanismo de Estabilidade Europeu (European Stability Mechanism) (link aqui) e a crónica é do nosso conhecido Wolfgang Münchau (link aqui para a versão espanhola). As datas de publicação respeitam a 15 de outubro e ao dia de hoje, aparentemente sendo determinadas por lógicas próprias, mas na perspetiva do realismo que procuramos, os dois elementos de informação são preciosos e completam-se virtuosamente. Explico-me.

Respeitemos a data de publicação e comecemos assim pela entrevista de Regling.

O tema central da entrevista são as regras do Pacto Europeu de Estabilidade e a questão super-quente da sua revisão. Percebe-se que o jornalista do Der Spiegel pretende encostar Regling ao sentimento que a direita alemã tem veiculado, apelando a uma simples reinstalação da disciplina do endividamento imediatamente após a recuperação da pandemia, que suspendeu tais regras. A argumentação do jornalista é conhecida e esperada, glosando o tema da subida das taxas de juro, com toda a ladainha de que é preciso impor de novo limites e apagar de vez a ilusão pandémica.

A resposta de Regling é inteligente e bastante moderada. Não abandona a ideia de regras, mas afasta a simples reposição das mesmas, sem ter em conta as alterações de contexto entretanto observadas. E frisa que, embora se saiba que as taxas de juro não irão permanecer para sempre nestes intervalos tão baixos, não sabe de nenhum economista prestigiado que antecipe uma subida descontrolada dessas taxas. E avança com uma ideia importante, que Lawrence Summers e Bem Bernanke, economistas americanos de grande prestígio, já em tempos assinalaram. Ao contrário do que a vulgata pretende instalar, as baixas taxas de juro não são uma consequência das políticas acomodatícias dos Bancos Centrais. Elas são antes o reflexo de condições estruturais das economias avançadas, nestas se destacando o notável excesso de poupança acumulado nessas economias pela progressão do envelhecimento e pelos comportamentos prudenciais dos mais idosos para responder ao prolongamento da esperança de vida sabe-se com que condições de saúde e de bem-estar psicológico e material. E face a esse novo contexto, Regling tem um assomo de verdade: com esse excesso de poupança, estrutural e não fruto da política dos bancos centrais, se os empréstimos fossem cerceados, então a disparidade deficitária seria ainda maior e as taxas de juro ainda tenderiam a descer mais. Embalado, Regling disserta depois sobre os mitos do endividamento italiano, precisando que com a descida das taxas o aumento do endividamento coexiste com a diminuição do seu peso, reafirmando que a situação financeira italiana é bem melhor do que aquela que é percebida na Alemanha. Tudo com uma dose farta de realismo: nada de admitir de que o Fundo de Recuperação Europeu se transformará em algo de permanente dada a inelasticidade dos Tratados, sendo por isso necessário recorrer aos instrumentos existentes, tais como o orçamento europeu, o BEI e os empréstimos nacionais. Tudo isto sem deixar de reconhecer que a regra dos 60% de dívida no PIB não tem hoje qualquer sentido e aconselhar sabiamente que “não reduzir abruptamente os seus empréstimos, já que as taxas de juro poderiam baixar ainda mais”.

Concluo que, realismo sim, que baste, mas que também alguma coisa mudou.

O banho de realismo que vem da crónica de Münchau é complementar do da entrevista de Regling e respeita mais ao otimismo infundado que circulou por alguns círculos a propósito da vitória do SPD nas eleições alemãs e da possível coligação SPD- Verdes-Liberais. O que ressalta da crónica de Münchau é mais um banho de realismo do que um banho de água fria.

O cronista alemão acredita que da nova coligação possa resultar um período mais promissor de investimento na Alemanha, essencialmente liderado pelos investimentos da digitalização e no digital, mas apressa-se a sublinhar que parte desse investimento consistirá em remediar défices de investimento público que a tontice austeritária na Alemanha deixou a descoberto. Münchau defende que os 1,5% do PIB que esse programa de investimento poderá representar não poderá ser entendido na sua globalidade como um estímulo fiscal, que daria assim ânimo à procura interna na Alemanha e gerar algum potencial de rendimento para os países europeus fornecedores da Alemanha. O cronista refere que o governo já teria reservado fundos para esse programa, designadamente os fundos de recuperação da própria União Europeia, esperando-se apesar disso que o programa possa ser parcialmente cofinanciado pela supressão da anacrónica e incompreensível subvenção ao diesel.

Münchau não acredita ainda que do possível governo de Scholz (SPD) decorram mudanças estruturais sérias nos pontos mais débeis da economia alemã, tais como a sua tendência para gerar excedentes comerciais que estão nos antípodas de uma boa prática à escala europeia, a redução da dependência face à China para as suas exportações ou a menor dependência relativamente às importações de gás natural provenientes da Rússia.

A capa que o Economista dedicava à questão alemã na semana de 25 de setembro a 1 de outubro punha corretamente os pontos nos iii: “The Mess Merkel leaves behind”.

Mas onde o banho é mais de água fria do que de realismo é o que segundo Münchau se antevê para a frente europeia. Já o tinha assinalado neste espaço que as eleições alemãs foram um deserto total em tempos de pensamento e estratégia europeia. Afinal a tal “Mess” em que Merkel deixou a Alemanha torna impossível qualquer posicionamento alemão que não seja reequilibrar um lençol que é curto para tantos problemas: é a propensão estrutural para gerar excedentes comerciais, é a dependência face à China, é também a vulnerabilidade face à política energética de Putin e o acordo com a Turquia em matéria de imigração é como meter alguém de pouca confiança em nossa casa. Com esse contexto, caladinhos é o melhor para os alemães. E, para além disso, anuncia-se para ministro das Finanças, alguém dos Liberais, que prolongará o painel de gente sinistra para o lugar. Comparado com o tal Christian Lindner, o novo chanceler Scholz será uma pomba branca. E o tom em que Münchau acaba a sua crónica é bem pesado:

“Suspeito que, no futuro, a Alemanha acabará por ser um sócio tecnológico menor da China, enquanto finge ser um aliado fiel dos EUA e um bom europeu ao mesmo tempo. Umas das muitas lições desta sequência é que as oportunidades históricas – com a crise da dívida soberana do euro, não podem assim ser desaproveitadas. O que se deixar passar nesta década não voltará na seguinte”.

Sábias palavras.

 

 

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