segunda-feira, 25 de outubro de 2021

DERIVA OU REFUNDAÇÃO DO SOCIALISMO DEMOCRÁTICO?

 

(Eva Vásquez para o artigo Sonata de Outono de Juan Luís Cebrián no El País de hoje)

(Quando a hipótese de eleições antecipadas se torna cada vez mais verosímil e a disputa interna entre Rio e Rangel vai ser a salvífica rampa de lançamento que o PSD necessitava para saltar do marasmo atávico, Rio adentro, em que se encontrava, é natural que me interrogue sobre o posicionamento de pensamento que o PS deve assumir no eventual novo ato eleitoral. Tudo isto parece contraditório com a minha defesa da aproximação à esquerda parlamentar, mas efetivamente não é, como o explicarei no post de hoje. Devo reconhecer que a minha inspiração para o ajuste de contas com o écran vazio de hoje não vem de pensamento criativo entre muros, mas antes foi despertado por dois senhores do pensamento político espanhol, Juan Luís Cebrián (link aqui) e José Maria Maravall (link aqui). Por cá, a retaguarda de pensamento do PS, se ela existe começo a ter dúvidas, parece mais propensa a discutir a possível queda do poder do que propriamente interessada em contribuir para a refundação do socialismo democrático. Que se cuidem, pois pelo menos Paulo Rangel tem pensamento. Por muito que me custe imaginar a figura de um Paulo Rangel a liderar um governo, vi-o pelo menos duas vezes a passear isolado e vencido da vida um cão raquítico pelo jardim Soares dos Reis, não podemos dizer que não tem pensamento, ao contrário de Rio.)

No meu referencial político continua presente aquela ideia, talvez peregrina para os dias de hoje, de que a escolha dos nossos representantes políticos no Parlamento e na governação (por isso acho que em debate eleitoral não é apenas a questão do programa que interessa, mas quem o vai implementar, governando) é uma escolha por aqueles que possam melhor interpretar e aplicar a nossa visão do mundo e do país. Ou, seja, aplicarem a sua própria visão que identificamos próxima ou espelhando a nossa própria.

Neste modelo, a questão da proximidade dos representantes políticos junto dos representados ou a sua capacidade para bem interpretar o que pensam estes representados assumiriam uma importância vital. O problema é que nesse diálogo entre representantes e representados existe uma mediação que, por vezes, predomina e ocupa o espaço do tal diálogo de proximidade ou de convergência de ideias entre políticos e eleitores. As máquinas partidárias, que são obviamente necessárias e preenchem funções que o vulgar eleitor não está disposto a concretizar, intrometem-se na relação e distorcem-na, por vezes com estrondo. Governar para agradar aos elementos das máquinas partidárias não equivale a respeitar as razões do contrato que o eleitorado votante quis celebrar, sobretudo porque os ideários programáticos se têm dissolvido perigosamente na força agregadora interna de um partido qualquer. É assim que entendo as razões pelas quais o PS chega a uma mais que provável crise política sem qualquer esforço de pensamento futuro que seja. Haverá alguns membros do partido que pensarão que o PRR e a estratégia futura para a programação plurianual de Fundos Estruturais representam o pensamento mais elaborado que existe na altura. Estamos conversados, vou ali e venho e todos parecem ter esquecido o que foi possível desenhar e discutir na preparação do último ato eleitoral, que necessita de reconsideração e recontextualização, pois entretanto emergiram novas tendências com a pandemia, os populismos assanharam-se e a própria economia mundial já tem nada a ver com o tempo das últimas eleições (o tempo político voa mais do que nunca).

Como é óbvio que todos sabemos que os sistemas políticos todos têm vantagens e inconvenientes e que dificilmente no nosso contexto político assistiríamos ao trágico acontecimento do assassínio do parlamentar conservador David Amess que terá traumatizado a classe política do Reino Unido. A rediscussão da lei eleitoral em Portugal não é tema para esta reflexão, mas o que parece claro é que mesmo sem evoluir para o voto uninominal por circunscrição política, no sistema político português existe um vazio de identificação com o eleitorado mais volátil e mais atingido pela desigualdade. Sabemos que o preenchimento desse vazio não passa nem pela rendição ao que de mais irracional e dissoluto passa pelas redes sociais, nem por campanhas de rua à moda antiga, com sardinhadas e churrascadas que podem matar a fome a alguns. Há soluções intermédias a explorar que passam por trabalhar e dinamizar a organização da atividade cívica e participativa (chapéu ao Amigo José Carlos Mota da Universidade de Aveiro pela sua tenaz intervenção nesse sentido) e sobretudo pelo foco prioritário de diálogo com alguns grupos sociais, tais como os jovens e a sua empregabilidade e os seus inícios de vida (prioridade absoluta às políticas de habitação), os vencidos ou pressionados pela digitalização e pela transformação tecnológica (uma solução política para combater o “skill bias” da inovação), uma nova maneira de tratar a problemática das empresas e da criação de valor e os públicos tolhidos pela armadilha da pobreza.

Não se trata de antecipar um programa político para uma eventual e renhida barganha eleitoral que a crise orçamental nos vai muito provavelmente trazer. Trata-se, tão só, de definir alguns princípios para combater o afastamento político de que não só o socialismo democrático do PS está a padecer. A aproximação à esquerda parlamentar cumpriu um papel histórico, mas o PCP e o Bloco de Esquerda, por mais argumentos justificativos que possam arranjar, decidiram que não há mais contexto para aguentar essa aproximação. E também não poderemos ignorar que se foi esgotando a elasticidade da sociedade portuguesa e dos seus recursos para acomodar os custos dessa negociação. Quem não quer estar casado de papel ou de boca divorcia-se e vai à vida, umas vezes com êxito, outras arrependendo-se amargamente. Sempre quero ver o discurso que o PCP e o Bloco vão preparar para justificar aos seus militantes que algumas das generosas benesses do orçamento mais à esquerda dos últimos tempos que poderiam entrar em vigor em 1 de janeiro afinal ficarão na gaveta por não existir orçamento aprovado.

E uma de duas: ou não me engano e PCP e Bloco serão penalizados num próximo ato eleitoral, ou me engano e os eleitores dos dois partidos premeiam a teimosia e a irracionalidade. Neste último caso, o futuro é passar a escrever sobre futebol, porque provavelmente de política não perceberei patavina.

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