terça-feira, 14 de abril de 2020

TESTEMUNHOS (9)


 (Editorial Teorema)

(Já há algum tempo que não lia nada de Enrique Vila-Matas. Dublinesca, 2011 e Mac e o seu Contratempo, 2020 deixaram-me boas recordações, particularmente o primeiro pelos roteiros Joyceanos de Dublin que gostaria ainda um dia de percorrer. Para hoje um excerto de uma crónica que nos conduz aos roteiros imaginários que tendemos a construir neste confinamento que ameaça prolongar-se pelo menos para os de idade mais avançada. Como é que o legislador tratará o meu caso?

A crónica tem origem no eterno Babelia e intitula-se apropriadamente “Uma injeção de humildade” (link aqui)

Excerto

“(…) E hoje, sem ir mais longe, entrei no ensaio que Jordi Soler dedica às “microviagens” dentro do seu literariamente invencível Mapa secreto do bosque (Debate) e como leitor pandémico senti-me imediatamente bem. Porque Soler aí falava do pulsar atávico que sobrevive como um náufrago no nosso disco duro, esse pulsar que levava os nossos antepassados, há noventa mil anos, a explorar os entornos das suas covas e assegurar que a sua família teria uma noite tranquila. E o que propunha era que, como antídoto face à grande deslocação que em teoria nos tornaria mais ilustrados, nos dedicássemos a fazê-lo com um mapa cujo centro fosse a nossa casa e começássemos a caminhar pelas ruas que a rodeavam, a construir experiências do nosso próprio entorno, a ver lugares que nunca vimos com o tempo necessário.  Soler propunha em definitivo que construíssemos a cartografia desse universo mínimo, cujo centro é o nosso lar. Uma tarefa, pensei eu, ajustada ao que de momento vivemos, em pleno confinamento, quiçá uma saída semanal humilde viagem. para compras seja para nós suficiente. Porque não? Uma injeção de humildade. Uma breve e razoavelmente humilde viagem. E ao fim e ao cabo um passeio que nos poderia devolver a um ritmo de vida melhor do que levamos quando viajamos de avião a toda a brida para a Cochinchina.”

A pena de Vila-Matas, não sei se conscientemente ou por força de um desvario criativo determinado pelo próprio isolamento, põe o dedo numa das grandes interrogações que emergirão no após debelar a crise sanitária. Será que o modo de viajar no mundo das duas últimas décadas irá ser o mesmo? Como é óbvio, a sedução do longínquo, do inóspito ou do exótico existirão sempre e viajantes errantes distinguir-se-ão sempre dos arrebanháveis em hordas turísticas. O problema não é esse. A questão está em saber se os transportes em massa a grande distância irão continuar a ser o que eram nessas duas décadas. Será que o universo de tudo que é trendy se aguentará, reinventando-se efémera e incessantemente?

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