quarta-feira, 15 de abril de 2020

AINDA MARIA DE SOUSA



Apesar das palavras de homenagem já justamente dirigidas a Maria de Sousa neste espaço pelo meu colega de blogue, não resisto a aqui deixar também um brevíssimo apontamento pessoal sobre o desaparecimento anteontem ocorrido da cientista. Apenas para sublinhar que, do que dela pude conhecer, a descrição escolhida pelo “Público” é especialmente feliz ao estender os seus interesses e modo de estar à cidadania e às artes. Querendo acrescentar ainda que tive o gosto de partilhar com ela, sobretudo na decorrência mais imediata do seu regresso a Portugal em 1984 (após uma carreira de excelência na Escócia e nos EUA) e do seu ingresso no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto, algumas conversas mais ou menos coletivas sobre temas académico-científicos (numa fase de mudança da Ciência e da Investigação em Portugal e a Norte, como muito bem assinala o António Figueiredo) e sobre as opções políticas de fundo que então se nos deparavam (estas, no meu caso, quase sempre comandadas por uma ligação estreita a Mário Soares). E termino assinalando a algo perversa coincidência de uma prestigiada professora catedrática de Imunologia e estudiosa de sistemas imunológicos ter sido vítima, em última instância, de uma doença viral.


Em complemento (16 de abril):

Já depois de escrito o texto acima, tive conhecimento pela Anabela Mota Ribeiro (AMR) do “poema-despedida” que Maria de Sousa escreveu no dia 3, quando muito provavelmente já sentia sintomas da doença que a levaria ao internamento do dia 7 e à posterior morte física. Como dizia a AMR na sua mensagem, “nós, os amigos da Maria, encontrámo-la nestas palavras, nas evocações, sentimo-nos todos (nós, humanidade) interpelados”. Mais abaixo, permito-me reproduzir ainda, com a devida gratidão, a tradução do poema por João Luís Barreto Guimarães, seu amigo e antigo aluno e um reconhecido e consagrado poeta.


Carta de amor numa pandemia vírica
Gaitas-de-fole tocadas na Escócia
Tenores cantam das varandas em Itália
Os mortos não os ouvirão
E os vivos querem chorar os seus mortos em silêncio
Quem pretendem animar?
As crianças?
Mas as crianças também estão a morrer


Na minha circunstância
Posso morrer
Perguntando-me se vos irei ver de novo
Mas antes de morrer
Quero que saibam
O quanto gosto de vós
O quanto me preocupo convosco
O quanto recordo os momentos partilhados e queridos
Momentos então
Eternidades agora
Poesia
Riso
O sol-pôr
no mar
A pena que a gaivota levou à nossa mesa
Pequeno-almoço
Botões de punho de oiro
A magnólia
O hospital
Meias pijamas e outras coisas acauteladas
Tudo momentos então
Eternidades agora
Porque posso morrer e vós tereis de viver
Na vossa vida a esperança da minha duração

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