(Edgar Morin e John Gray são pensadores com trabalho e reflexão
importantes sobre a realidade planetária com que o avanço da globalização nos
interpelou. Uma entrevista no Corriere della Sera e um artigo na The New
Statesman, respetivamente, permitem retomar o seu pensamento vertido, como não
podia deixar de ser, para o turbilhão em que estamos metidos.
A dimensão económica
e financeira da globalização, a sua mais florescente manifestação dadas as implicações
positivas e negativas (não é altura de as pesar) sobre a vida dos indivíduos em
busca do bem-estar material e da felicidade, colocou injustamente na sombra
pensadores sobre outras manifestações, não menos sugestivas e relevantes.
Edgar Morin foi dos
primeiros pensadores, ou filósofos como queiram, a elaborar sobre as
implicações para o pensamento provocadas pela dimensão planetária da atividade
nas suas diferentes e múltiplas dimensões. Aquilo que poderíamos designar por
Teoria ou Tratado do Pensamento Complexo levou Morin a um conjunto de seis
volumes (de 1977 a 2004) sob o tema O Método para descrever o pensamento
necessário para a complexidade. Já nos fins da década de 90 e inícios dos anos
2000, Morin aplicou essa abordagem da complexidade na conceção de reformas
educativas e do próprio conhecimento para entender a incerteza que a dimensão
planetária estava a gerar. Há um título de uma obra de Morin de 2003 que
exprime melhor do que todos os outros o que Morin queria sintetizar e deixar
como legado do seu pensamento: “Éduquer pour l'ère planétaire, la pensée
complexe comme méthode d’apprentissage dans l'erreur et l’incertitude humaine”,
editada pela Balland.
Revisitei várias
vezes a obra de Morin quando buscava recursos para compreender como poderia ser
operacionalizada a complexidade do planeamento, sobretudo nos tempos já idos em
que o desenvolvimento integrado nos mobilizava como elemento de aproximação aos
territórios.
Na entrevista ao suplemento La Lettura do Corriere
della Sera, também reproduzida no El País (link aqui), Morin em confinamento na
sua nova casa de Montpellier, depois de abandonar Paris já há algum tempo, desenvolve
sobretudo a contradição fatal da dimensão planetária gerada pela globalização
não ter conseguido criar o que ele designa de “ausência
de una autêntica consciência planetária da humanidade”. Ou seja,
quando a mais profunda interdependência entre países criada pela globalização
poderia ter determinado a compreensão do humano na sua irredutível diversidade,
os primeiros sinais evidentes de que há vencedores e perdedores na globalização
geraram precisamente comportamentos opostos. A pandemia atual não fez mais do
que acordar fantasmas que já se tinham movimentado quando a narrativa do win-win
da globalização foi vencida pelos factos e pelo acantonamento de novas formas
de pobreza nas sociedades mais avançadas, a começar pela americana.
Morin conserva a sua
compreensão positiva e sublinha que nunca como hoje a perceção do outro está
viva o que não apaga os casos ainda pontuais de pandemia xenófoba que vão
aparecendo, ainda felizmente sem expressão, nos países com maior incidência.
Para além disso, a magnitude dos estragos económicos com que a pandemia vai
deixar o mundo, desigualmente é certo, é incomensurável. É tão elevada que
dificilmente isso não irá exigir soluções globais, mutualizadas ou não, mas
insuscetíveis de ser resolvidas segundo modelos de puro egoísmo nacional. E,
também como não podia deixar de ser, denuncia na entrevista os males e desvios
do que ele chama darwinismo social, condenando os mais velhos e mais frágeis a
uma espécie de eutanásia coletiva.
O catastrofismo de
John Gray é mais complexo e contraditório do que o pensamento de Morin e por
isso não é dos pensadores que me entusiasme. Um homem cuja obra se diz ter
influenciado a ascensão de Thatcher e depois ter impressionado Blair não é lá
uma carta de recomendação que valorize muito. Mas o seu artigo na The New Statesman
(link aqui) sobre os efeitos da crise pandémica no desboroar da globalização vale a pena
ser lido. Principalmente, porque
identifica bem a
impossibilidade dela se manter incólume ou do regresso ao mais puro localismo. A
profecia é determinada: “Apesar de todo o seu palavreado sobre a liberdade e a
eleição, o liberalismo era na prática uma experiência de dissolução de todas as
fontes tradicionais de coesão social e de legitimidade política e da sua
substituição pela promessa de um aumento do nível material de vida. Esta
experiência chegou agora ao fim. Para acabar com o vírus é imprescindível
promover um encerramento económico, mas quando a economia volte a arrancar,
será um mundo em que os Governos intervirão para colocar um travão ao mercado
mundial”.
No
âmbito de um conjunto diverso de antecipação de profundas mudanças na geopolítica
mundial, o futuro da União Europeia é visto como algo de macabro: “Se a União
Europeia sobreviver, pode assemelhar-se ao Sacro Império Romano nos seus
últimos anos de existência, um fantasma que permanece durante gerações enquanto
que o poder é exercido noutro lugar. As decisões mais importantes já estão a
ser tomadas pelos Estados nacionais. Dado que o centro político deixou de ser
uma força de liderança e com grande parte da esquerda presa ao falido projeto
europeu, muitos Governos serão dominados pela extrema direita”. Assustador,
não?
Uma das obsessões
mais recentes do pensamento de Gray reside na sua tese, repetidas vezes
reformulada, de que o homem tem sido incapaz de assegurar a continuidade
sustentável do planeta, correndo riscos sérios pela sua miopia de extinção.
Compreende-se que uma pandemia muito provavelmente iniciada por uma não
resolvida convivência alimentar do homem com animais terá inevitavelmente que fazer
ressurgir os fantasmas obsessivos de Gray.
A demonstração
trágica de que o progresso é reversível e o avanço inexorável do nacionalismo
ditada neste caso pela ausência de mecanismos planetários de combate à pandemia
são os traços que ele acaba por destacar. E sem querer discutir profundamente
as suas obsessões talvez não pense mal.
Sem comentários:
Enviar um comentário