quinta-feira, 16 de abril de 2020

PENSADORES PLANETÁRIOS



(Edgar Morin e John Gray são pensadores com trabalho e reflexão importantes sobre a realidade planetária com que o avanço da globalização nos interpelou. Uma entrevista no Corriere della Sera e um artigo na The New Statesman, respetivamente, permitem retomar o seu pensamento vertido, como não podia deixar de ser, para o turbilhão em que estamos metidos.

A dimensão económica e financeira da globalização, a sua mais florescente manifestação dadas as implicações positivas e negativas (não é altura de as pesar) sobre a vida dos indivíduos em busca do bem-estar material e da felicidade, colocou injustamente na sombra pensadores sobre outras manifestações, não menos sugestivas e relevantes.
 

Edgar Morin foi dos primeiros pensadores, ou filósofos como queiram, a elaborar sobre as implicações para o pensamento provocadas pela dimensão planetária da atividade nas suas diferentes e múltiplas dimensões. Aquilo que poderíamos designar por Teoria ou Tratado do Pensamento Complexo levou Morin a um conjunto de seis volumes (de 1977 a 2004) sob o tema O Método para descrever o pensamento necessário para a complexidade. Já nos fins da década de 90 e inícios dos anos 2000, Morin aplicou essa abordagem da complexidade na conceção de reformas educativas e do próprio conhecimento para entender a incerteza que a dimensão planetária estava a gerar. Há um título de uma obra de Morin de 2003 que exprime melhor do que todos os outros o que Morin queria sintetizar e deixar como legado do seu pensamento: “Éduquer pour l'ère planétaire, la pensée complexe comme méthode d’apprentissage dans l'erreur et l’incertitude humaine”, editada pela Balland.

Revisitei várias vezes a obra de Morin quando buscava recursos para compreender como poderia ser operacionalizada a complexidade do planeamento, sobretudo nos tempos já idos em que o desenvolvimento integrado nos mobilizava como elemento de aproximação aos territórios.

Na entrevista ao suplemento La Lettura do Corriere della Sera, também reproduzida no El País (link aqui), Morin em confinamento na sua nova casa de Montpellier, depois de abandonar Paris já há algum tempo, desenvolve sobretudo a contradição fatal da dimensão planetária gerada pela globalização não ter conseguido criar o que ele designa de “ausência de una autêntica consciência planetária da humanidade”. Ou seja, quando a mais profunda interdependência entre países criada pela globalização poderia ter determinado a compreensão do humano na sua irredutível diversidade, os primeiros sinais evidentes de que há vencedores e perdedores na globalização geraram precisamente comportamentos opostos. A pandemia atual não fez mais do que acordar fantasmas que já se tinham movimentado quando a narrativa do win-win da globalização foi vencida pelos factos e pelo acantonamento de novas formas de pobreza nas sociedades mais avançadas, a começar pela americana.

Morin conserva a sua compreensão positiva e sublinha que nunca como hoje a perceção do outro está viva o que não apaga os casos ainda pontuais de pandemia xenófoba que vão aparecendo, ainda felizmente sem expressão, nos países com maior incidência. Para além disso, a magnitude dos estragos económicos com que a pandemia vai deixar o mundo, desigualmente é certo, é incomensurável. É tão elevada que dificilmente isso não irá exigir soluções globais, mutualizadas ou não, mas insuscetíveis de ser resolvidas segundo modelos de puro egoísmo nacional. E, também como não podia deixar de ser, denuncia na entrevista os males e desvios do que ele chama darwinismo social, condenando os mais velhos e mais frágeis a uma espécie de eutanásia coletiva.


O catastrofismo de John Gray é mais complexo e contraditório do que o pensamento de Morin e por isso não é dos pensadores que me entusiasme. Um homem cuja obra se diz ter influenciado a ascensão de Thatcher e depois ter impressionado Blair não é lá uma carta de recomendação que valorize muito. Mas o seu artigo na The New Statesman (link aqui) sobre os efeitos da crise pandémica no desboroar da globalização vale a pena ser lido. Principalmente, porque
identifica bem a impossibilidade dela se manter incólume ou do regresso ao mais puro localismo. A profecia é determinada: “Apesar de todo o seu palavreado sobre a liberdade e a eleição, o liberalismo era na prática uma experiência de dissolução de todas as fontes tradicionais de coesão social e de legitimidade política e da sua substituição pela promessa de um aumento do nível material de vida.   Esta experiência chegou agora ao fim. Para acabar com o vírus é imprescindível promover um encerramento económico, mas quando a economia volte a arrancar, será um mundo em que os Governos intervirão para colocar um travão ao mercado mundial”. 


No âmbito de um conjunto diverso de antecipação de profundas mudanças na geopolítica mundial, o futuro da União Europeia é visto como algo de macabro: “Se a União Europeia sobreviver, pode assemelhar-se ao Sacro Império Romano nos seus últimos anos de existência, um fantasma que permanece durante gerações enquanto que o poder é exercido noutro lugar. As decisões mais importantes já estão a ser tomadas pelos Estados nacionais. Dado que o centro político deixou de ser uma força de liderança e com grande parte da esquerda presa ao falido projeto europeu, muitos Governos serão dominados pela extrema direita”. Assustador, não?

Uma das obsessões mais recentes do pensamento de Gray reside na sua tese, repetidas vezes reformulada, de que o homem tem sido incapaz de assegurar a continuidade sustentável do planeta, correndo riscos sérios pela sua miopia de extinção. Compreende-se que uma pandemia muito provavelmente iniciada por uma não resolvida convivência alimentar do homem com animais terá inevitavelmente que fazer ressurgir os fantasmas obsessivos de Gray.

A demonstração trágica de que o progresso é reversível e o avanço inexorável do nacionalismo ditada neste caso pela ausência de mecanismos planetários de combate à pandemia são os traços que ele acaba por destacar. E sem querer discutir profundamente as suas obsessões talvez não pense mal.

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