Sid Hustvedt
(John Minchillo para a Associated Press - Performance em Times Square a 20.03.2020)
(Nova Iorque, a cidade densa por natureza, está a ser
flagelada pela crise viral. Sid Hustvedt, escritora americana residente na
cidade com o seu marido Paul Auster, ambos em isolamento e infetados, traz-nos um
testemunho de dentro, intenso e revelador. Ainda gostava de sentir uma vez mais a densidade das atmosferas de Nova
Iorque.)
Três excertos da crónica
no Babelia de ontem. Os sub-títulos são da minha responsabilidade:
Sobre o vazio urbano
“O tempo alongou-se e colapsou devido à
emoção. O meu seminário de 6 de março pertence a uma outra época, na qual a
cidade tinha tráfego, calçadas abarrotadas e carruagem ruidosas do metro em que
os nova-iorquinos se tocavam o peito e a bochecha, a axila com o nariz,
cotovelo com cotovelo, em que a cabeça adormecida de um passageiro cansado
podia cair de repente sobre o ombro do desconhecido sentado junto a si e esse
contacto fugaz não tinha qualquer significado. Essas recordações são agora de
uma índole alucinatória, ao mesmo tempo familiar e longínqua. A cidade que
recordo desapareceu, assim como um sem número de cidades e povoados de todo o
mundo que se converteram em conchas, vazias de vida. Desde que adoeci, estou
encerrada em casa. Escrevo como sempre, mas vivo em suspenso, com medo. Imagino
o futuro. Será uma restauração do que existiu ou uma realidade completamente distinta.
(…)
Uma divagação pela psiquiatria
Otto Kernber, psicanalista e professor de psiquiatria,
nasceu em Viena. Fugiu do país e dos nazis com a sua família em 1938. Escreveu
longamente sobre o narcisismo, que passa por ser uma desordem de personalidade
anti-social, também chamada de psicopatia, uma forma extrema de narcisismo.
Kernberg assinala que as pessoas com essas características, além das mentiras,
da grandiosidade e falta de sentimento de culpa e de empatia habituais, “carecem
de sentido do decorrer do tempo, de planeamento do futuro … A sua incapacidade
para aprender com a experiência passada é a expressão da mesma incapacidade de
conceber a vida para lá do momento imediato”. Durante mais de três anos o mundo
viu um presidente americano preso no seu próprio presente espontâneo e volátil,
com um narcisismo patológico e alimentado diariamente por inúmeros meios de
comunicação, enquanto milhões de seguidores, tanto nos EUA como no resto do
mundo, aprovam as suas mensagens virais, xenófobas, racistas e misóginas, mas
retumbantes. Uma das últimas: o vírus é chinês.” (…)
A tragédia de eleger um narcisista
Os nova-iorquinos estão a pagar um prelo muito elevado
por fantasias virais combinadas agora com a praga de um vírus real que está a superar
os profissionais dos nossos hospitais. Não podem atender todos os doentes e não
têm máscaras, batas ou luvas para se protegerem. Para reduzir despesas, o
governo de Trump dissolveu a equipa americana encarregada de resposta às
pandemias. Despediu burocratas, cientistas e diplomáticos experimentados e esvaziou
de peritos departamentos atrás de departamentos. Trump povoou o seu Governo de
aduladores e incompetentes servis. Mentiu repetidamente aos cidadãos, chegando
a prometer que o vírus desapareceria como “por milagre”. “Quem quer fazer a
prova tê-la-á”. Divagou sobre uma decisão atrás da outra, negou ventiladores disponíveis
sob o seu controlo a Estados que deles precisavam. Desprezou o seu próprio
exército quando este ofereceu ajuda para a crise. Demonstrou que não tem a mínima
perceção do tempo, nem memória do passado imediato – que aspeto terão amanhã as
suas mentiras de hoje – nem antecipação do futuro imediato. A sua única
urgência é desfilar perante as câmaras.”
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