domingo, 5 de abril de 2020

TESTEMUNHOS (6)

Sid Hustvedt
(John Minchillo para a Associated Press - Performance em Times Square a 20.03.2020)


(Nova Iorque, a cidade densa por natureza, está a ser flagelada pela crise viral. Sid Hustvedt, escritora americana residente na cidade com o seu marido Paul Auster, ambos em isolamento e infetados, traz-nos um testemunho de dentro, intenso e revelador. Ainda gostava de sentir uma vez mais a densidade das atmosferas de Nova Iorque.)

Três excertos da crónica no Babelia de ontem. Os sub-títulos são da minha responsabilidade:

Sobre o vazio urbano

O tempo alongou-se e colapsou devido à emoção. O meu seminário de 6 de março pertence a uma outra época, na qual a cidade tinha tráfego, calçadas abarrotadas e carruagem ruidosas do metro em que os nova-iorquinos se tocavam o peito e a bochecha, a axila com o nariz, cotovelo com cotovelo, em que a cabeça adormecida de um passageiro cansado podia cair de repente sobre o ombro do desconhecido sentado junto a si e esse contacto fugaz não tinha qualquer significado. Essas recordações são agora de uma índole alucinatória, ao mesmo tempo familiar e longínqua. A cidade que recordo desapareceu, assim como um sem número de cidades e povoados de todo o mundo que se converteram em conchas, vazias de vida. Desde que adoeci, estou encerrada em casa. Escrevo como sempre, mas vivo em suspenso, com medo. Imagino o futuro. Será uma restauração do que existiu ou uma realidade completamente distinta.   (…)

Uma divagação pela psiquiatria

Otto Kernber, psicanalista e professor de psiquiatria, nasceu em Viena. Fugiu do país e dos nazis com a sua família em 1938. Escreveu longamente sobre o narcisismo, que passa por ser uma desordem de personalidade anti-social, também chamada de psicopatia, uma forma extrema de narcisismo. Kernberg assinala que as pessoas com essas características, além das mentiras, da grandiosidade e falta de sentimento de culpa e de empatia habituais, “carecem de sentido do decorrer do tempo, de planeamento do futuro … A sua incapacidade para aprender com a experiência passada é a expressão da mesma incapacidade de conceber a vida para lá do momento imediato”. Durante mais de três anos o mundo viu um presidente americano preso no seu próprio presente espontâneo e volátil, com um narcisismo patológico e alimentado diariamente por inúmeros meios de comunicação, enquanto milhões de seguidores, tanto nos EUA como no resto do mundo, aprovam as suas mensagens virais, xenófobas, racistas e misóginas, mas retumbantes. Uma das últimas: o vírus é chinês.” (…)

A tragédia de eleger um narcisista

Os nova-iorquinos estão a pagar um prelo muito elevado por fantasias virais combinadas agora com a praga de um vírus real que está a superar os profissionais dos nossos hospitais. Não podem atender todos os doentes e não têm máscaras, batas ou luvas para se protegerem. Para reduzir despesas, o governo de Trump dissolveu a equipa americana encarregada de resposta às pandemias. Despediu burocratas, cientistas e diplomáticos experimentados e esvaziou de peritos departamentos atrás de departamentos. Trump povoou o seu Governo de aduladores e incompetentes servis. Mentiu repetidamente aos cidadãos, chegando a prometer que o vírus desapareceria como “por milagre”. “Quem quer fazer a prova tê-la-á”. Divagou sobre uma decisão atrás da outra, negou ventiladores disponíveis sob o seu controlo a Estados que deles precisavam. Desprezou o seu próprio exército quando este ofereceu ajuda para a crise. Demonstrou que não tem a mínima perceção do tempo, nem memória do passado imediato – que aspeto terão amanhã as suas mentiras de hoje – nem antecipação do futuro imediato. A sua única urgência é desfilar perante as câmaras.”

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