domingo, 26 de abril de 2020

CAMUS LIDO POR TONY JUDT



(Em post anterior, dei conta que tenho andado a reler o Pós-Guerra de Tony Judt para tentar compreender raízes históricas do que vai abalando a Europa e não apenas pelos efeitos da crise de saúde pública. Tinha necessidade de perceber melhor o período posterior ao fim da guerra e que deu origem ao célebre Plano Marshall, cujo nome tem sido pretensiosamente invocado por Ursula von der Leyen e outros. E, regra geral como sempre me acontece, cruzam-se comigo outras referências. É o caso da introdução que Tony Judt escreveu a uma reedição de A PESTE de Albert Camus. Verdadeiramente a propósito.




Nos tempos que vivemos, anda por aí uma procura mórbida de literatura que ficcionalmente tenha antecipado crises virais como a do presente, seja pelas vias menos conhecidas da ficção científica, seja por interpretações simbólicas ou metafóricas transponíveis para a pressão do nosso confinamento. A PESTE de Camus tem vindo a terreiro como um dos grandes exemplos desta última onda de literatura. Li Camus na minha adolescência já tardia. “L´étranger” (O Estrangeiro), “La Peste” (A Peste) e “La Chute” (A Queda) foram as três obras que então devorei, que não mais se perderam na memória. O estilo e os problemas morais que Camus tratava magistralmente condiziam com as grandes questões de uma adolescência tardia, sempre propensa a questionar-se e daí o impacto das mesmas.
 

Nas margens da releitura do PÓS-GUERRA de Tony Judt veio-me no radar das correntes cruzadas quando mergulho num tema a sua introdução a uma reedição de A PESTE publicada pela New York Review of Books em 2001 (link aqui) e que compreensivelmente a revista republicou recentemente. A interpretação que Judt faz da obra de Camus é, como não podia deixar, contextualizada em termos que vão muito para além de uma destruição sanitária como a que sofreu a cidade argelina de Oman e que serve de referência à obra de Camus. Judt refere que a obra deve ser também interpretada como uma alegoria dos tempos da ocupação francesa e dos dilemas morais colocados aos indivíduos entre os imperativos da decência e da resistência e o colaboracionismo. Aliás, Judt analisa escrupulosamente os tempos da ocupação e da resistência e do pós-guerra imediato na obra que estou a reler e são sobretudo os dilemas morais do que deve ser entendido por heroísmo que atravessam A PESTE. O que significa que as analogias com a pandemia atual que justificam as escolhas da obra como uma leitura obrigatória para os tempos que vivemos são talvez demasiado mecânicas e fáceis e necessitem por isso de uma outra contextualização histórica que o artigo de Judt na New York Review of Books nos proporciona. Talvez a ligação mais forte com a obra de Camus não esteja na analogia com a crise viral, mas antes nas nuances de bem e de mal e de heroísmo ou de complacência que atravessam todo este tempo.

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