(Em post anterior, dei conta que tenho andado a reler o
Pós-Guerra de Tony Judt para tentar compreender raízes históricas do que vai
abalando a Europa e não apenas pelos efeitos da crise de saúde pública. Tinha necessidade de perceber melhor o período posterior ao fim da guerra e
que deu origem ao célebre Plano Marshall, cujo nome tem sido pretensiosamente
invocado por Ursula von der Leyen e outros. E, regra geral como sempre me
acontece, cruzam-se comigo outras referências. É o caso da introdução que Tony
Judt escreveu a uma reedição de A PESTE de Albert Camus. Verdadeiramente a
propósito.
Nos tempos que
vivemos, anda por aí uma procura mórbida de literatura que ficcionalmente tenha
antecipado crises virais como a do presente, seja pelas vias menos conhecidas
da ficção científica, seja por interpretações simbólicas ou metafóricas transponíveis
para a pressão do nosso confinamento. A PESTE de Camus tem vindo a terreiro
como um dos grandes exemplos desta última onda de literatura. Li Camus na minha
adolescência já tardia. “L´étranger” (O Estrangeiro), “La Peste” (A Peste) e “La
Chute” (A Queda) foram as três obras que então devorei, que não mais se
perderam na memória. O estilo e os problemas morais que Camus tratava
magistralmente condiziam com as grandes questões de uma adolescência tardia,
sempre propensa a questionar-se e daí o impacto das mesmas.
Nas margens da
releitura do PÓS-GUERRA de Tony Judt veio-me no radar das correntes cruzadas quando
mergulho num tema a sua introdução a uma reedição de A PESTE publicada pela New
York Review of Books em 2001 (link aqui) e que compreensivelmente a revista republicou
recentemente. A interpretação que Judt faz da obra de Camus é, como não podia
deixar, contextualizada em termos que vão muito para além de uma destruição
sanitária como a que sofreu a cidade argelina de Oman e que serve de referência
à obra de Camus. Judt refere que a obra deve ser também interpretada como uma
alegoria dos tempos da ocupação francesa e dos dilemas morais colocados aos
indivíduos entre os imperativos da decência e da resistência e o colaboracionismo.
Aliás, Judt analisa escrupulosamente os tempos da ocupação e da resistência e
do pós-guerra imediato na obra que estou a reler e são sobretudo os dilemas
morais do que deve ser entendido por heroísmo que atravessam A PESTE. O que
significa que as analogias com a pandemia atual que justificam as escolhas da
obra como uma leitura obrigatória para os tempos que vivemos são talvez
demasiado mecânicas e fáceis e necessitem por isso de uma outra
contextualização histórica que o artigo de Judt na New York Review of Books nos
proporciona. Talvez a ligação mais forte com a obra de Camus não esteja na
analogia com a crise viral, mas antes nas nuances de bem e de mal e de heroísmo
ou de complacência que atravessam todo este tempo.
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