(A leitura da crónica de Clara Ferreira Alves de hoje no
Expresso não foi a melhor maneira de começar o dia depois de talvez arriscar um
pouco e ir buscar pão fresco, jornais e banda desenhada reservada desde o início
da quarentena. É uma crónica que não anima mas que
sublinha as virtudes de quem sabe decidir e comandar em tempos de crise.)
Em tempos normais, os
sábados e domingos são os únicos dias em que o pequeno-almoço é mais relaxado,
com tempo para o café combinado com a leitura, regra geral do Expresso, às vezes
também do Diário de Notícias, pois interiorizei a ideia de que o tinha de
comprar aos sábados para diferir a sua morte anunciada em papel. Nestes dias de
isolamento, tenho por precaução reforçado assinaturas digitais, o que nos
permite reduzir ao mínimo as saídas diárias para compra de jornais. É tudo uma
questão de hábito e não desdenharia tornar-me leitor exclusivamente digital.
Mas a saudade táctil do papel bate por vezes e sobretudo das posições de leitura
que, ainda não percebi cabalmente a razão, não são exatamente as mesmas no
papel e no digital, levou-me hoje à saída limitada e higiénica para o pão fresco
e os jornais. Com as devidas precauções, claro está, e genericamente com toda a
gente a respeitar rigorosamente o distanciamento cautelar.
A crónica de CFA é,
regra geral, a primeira leitura na modorra dos sábados e domingos. É mais um
ritual de hábitos do que propriamente uma identificação com a jornalista e
escritora. Frequentemente fico irritado com a prepotência de alguns dos seus comentários,
irrita-me também a visão muito lisboeta do Cosmos, se bem que a personagem
esteja sempre a invocar a sua experiência de repórter em tempos de guerra e
isso é uma experiência que inspira respeito a todos. Mas gosto do seu estilo de
escrita, curto, direto, sucinto, determinada e destemida nas suas construções,
sobretudo porque por mais que me esforce e tente esse não é o meu estilo. Os
contrários atraem-nos.
Ora, hoje quando dava
liberdade às minhas papilas gustativas para desfrutarem do pão fresco e não
torrado, a crónica de CFA causou-me alguma inquietação. Não que se trate de
matéria que esteja ausente das minhas cogitações diárias sobre as crises
pandémica e económica, à medida que vou coligindo cada vez mais informação e
cruzando impressões. Tenho conseguido manter algum otimismo crítico, sigo
diariamente várias curvas em várias geografias e tenho ganho alguma carapaça
face a profetas da desgraça de alguns artistas que o fazem apenas porque eles
próprios já estão infetados pelo nervosismo cruel da incerteza.
A crónica de CFA não pode
ser adicionada à desses profetas da desgraça. Tem elementos que eu já tinha
referenciado nestas reflexões, por exemplo a do descontrolo evidente do antigo
Diretor Geral da Saúde Francisco George, agora tornado mais evidente com o seu
propósito inicial de transformar exclusivamente o Hospital da Cruz Vermelha em
unidade COVID-19. Parece entretanto que o personagem recuou pois praticamente
todo o pessoal do hospital se opunha a essa transformação. Mas chocou-me a associação
de incompetência à atual Diretora-Geral Graça Freitas, o que não significa
considerar que a Senhora é perfeita. Não terei seguramente a informação mais
ampla que CFA possuirá a partir do seu feudo lisboeta. Mas, com exceção da história
um pouco rocambolesca do cerco sanitário ao Porto, em que também o posicionamento
do autarca Rui Moreira se alimentou de demasiado estrilho para meu gosto em
tempos pandémicos, não me foi visível a tal incompetência atribuída a Graça
Freitas. Quanto aos autarcas, hei de voltar a essa questão e sobretudo a esta
contradição. Os autarcas da AMP estão nesta aflição fartinhos de invocar o
tecido metropolitano do seu coração. Em meu entender, poderiam ser um pouco
mais coerentes pugnando, em termos normais, por uma área metropolitana digna
desse nome e prestando a devida atenção a um modelo de decisão efetivamente
participado.
Mas a palavra central da
crónica de CFA é “logística”. Talvez a jornalista tenha razão quando invoca que
são tempos de capacidade de decisão e de domínio o mais perfeito da máquina logística.
A todos os níveis. Da logística sanitária à logística do confinamento e à logística
necessária para evitar o colapso económico e social. Nestes planos, a minha
inquietação decorre sobretudo da dimensão coordenação que a logística sempre implica.
Em temos normais, as falhas de coordenação a todos os níveis são notórias e
alguns de nós, entre os quais me incluo, têm alertado para as mesmas. Não
imaginando como é óbvio que algum dia iríamos precisar de falha zero.
São tempos de inquietação
pela incerteza. Até porque noutros domínios outras questões não deixam de
prolongar essa incerteza. Devo usar ou não máscara e em que condições? Apenas
em situações em que a distância social esteja ameaçada? E a questão da
transmissão? Apenas pelas gotículas provenientes do trato respiratório com uma
curva relativamente reduzida até se projetarem no chão? A suspensão de gotículas
no ar tem sentido como veículo de disseminação para lá das conhecidas
atividades intrusivas no sistema respiratório de pacientes? A descida das taxas
de crescimento de infetados e suspeitos é sustentada, independentemente do
tempo que demorará a tornarem-se negativas?
Pela minha parte vou seguindo diariamente as diferentes curvas, sem angústia,
apenas com o sentido de me ir aproximando da resposta à questão central: em que
momento estamos?
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