(Edward Hopper)
(Imagino o que pintores, escultores, designers, compositores,
escritores, poetas, investigadores estarão a criar ou a recriar nestes dias de
isolamento, talvez obcecados com as suas reservas de materiais de trabalho e as
condições para o seu fornecimento. O testemunho de
Javier Marías anuncia-nos que a produção que emergirá a público daqui a uns tempos
não poderá ser dissociada deste isolamento.)
Ainda há pouco acabei o fabuloso TODAS AS ALMAS de Javier Marías e já ontem
iniciei o seu VIDAS ESCRITAS. O seu testemunho vem por isso “just in time”
publicado ontem no El País Semanal (link aqui).
Sobre a importância da evasão (memórias de uma estigmatização)
(…) Nestes dias de
medo e confinamento, pergunto-me o que seria da maioria de nós sem a estigmatizada
“evasão”. Deixei de ver e ler notícias sobre o coronavírus, para além dos
títulos indispensáveis, aplicando a mim próprio o que recomendei há algum tempo
ao falar dos bombardeamentos de infortúnios que, com a globalização, nos caem em
cima sem poder respirar. Em qualquer
recanto do mundo há sempre uma calamidade ou uma matança e, ao contrário dos
nossos antepassados (inclusivamente os mais recentes) estamos ao par de todas e
vivemos em angústia permanente. Assim pergunto-me relativamente a cada uma
delas: a) Isto diz-me deveras respeito?; b) Posso fazer alguma coisa para
remediar a situação?; Se as respostas são negativas, procuro não
sobrecarregar-me com coisas sobre as quais não posso intervir. O COVID-19
diz-me respeito, como ao resto da humanidade. Mas nada poso fazer a não ser
cuidar-me e ajudar os outros seguindo as instruções da OMS e das outras autoridades
sanitárias. Não vejo sentido – para o meu equilíbrio psíquico de tigre
enjaulado submeter-me a um monótono aluvião de informação e de opiniões
histéricas tão esmagador que me condena a estar de braços cruzados à espera que
a situação melhore ou piore (oxalá a primeira e ponto), independentemente da
minha vontade e da minha atenção”.
Poder criar em isolamento
“O confinamento apanhou-me fora de Madrid, por aí ando, por
sorte em companhia da Carme, minha mulher. Também por sorte estou a braços com
um novo romance que, por circunstâncias que não vêm ao caso, duvidei que algum
dia pudesse terminar. Ainda tenho muitas dúvidas, mas o facto é que nunca tinha
escrito outro em condições tão adversas e nem com tantos obstáculos. Inacreditavelmente,
já tem 380 páginas e uma vez que os anteriores tiveram respetivamente 558 e
576 respetivamente,
restando-me todavia muito trabalho para alcançar uma extensão similar. Mas hoje
desejo-o e espero não o alongar excessivamente por culpa deste longo
isolamento. Por agora teria pavor em conclui-lo. Pelo menos há umas horas do
dia em que mergulho em 1997 e noutra cidade, me encontro com personagens (uns novos,
outros velhos conhecidos), consigo abstrair-me com o que não existe, enganar a
minha imaginação, sentir-me em dívida voluntária para com uma “tarefa” que
tento fazer bem, embora não esteja a ser fácil. Isso é o que menos importa
nestes momentos. Se for péssimo, o que é que posso fazer: é a minha pequena
tábua de salvação. Também se acercam de mim medos mais prosaicos: como escrevo
à máquina, vão durar as fitas que tenho aqui? E o papel chegará?”
Todos
deveríamos poder olhar o isolamento com o desprendimento que ressalta do quadro
de Edward Hopper em Cape Cod, imagem que abre este post.
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