terça-feira, 7 de abril de 2020

TESTEMUNHOS (8)



(Regresso a Manuel Vilas, hoje com direito à reprodução integral traduzida da sua crónica no El País. Nunca li Horácio e pelos vistos os economistas não sabem o que perdem.)

Já devia estar às voltas com o que de interessante está a ser escrito sobre os diferentes modelos e alternativas para fazer regressar a economia a um simulacro do seu normal (fica prometido). Mas para uma “mente sã” faz-me bem regressar a outras formas de ler e interpretar este momento. A economia segue dentro de “momentos” por mais alterada que esteja a sua perceção.

O poeta romano Horácio, que nasceu no ano 65 antes de Cristo e viveu 56 anos, escreveu um verso memorável que dizia assim: “carpe diem, quam minimun credula postero”. A sua tradução é esta: “aproveita o dia e confia o mínimo no futuro”. Este verso influenciou de maneira esmagadora a literatura posterior, desde Petrarca, dante, Garcilaso, Cervantes até Byron, Whitman, Hemingway ou Constantino Kavafis. O carpe diem converteu-se num símbolo urgente da vitalidade.
Penso em Horácio porque agora nos roubaram o presente e somos convocados, a partir de nossas casas, onde estamos fechados, à espera de um futuro que se prolonga duas semanas mais a cada comparência de quem nos governa. O COVID-19 pulverizou Horácio e toda uma tradição literária, que amava a vida. Se o carpe diem triunfou em todo o mundo (recordo-me agora também do célebre filme O Clube dos Poetas Mortos) era porque recordava que a vida é um ato do presente.  O grande romancista J.G. Ballard deu uma outra volta moral ao carpe diem horaciano e disse que o passado não existe, com o qual pretendia dizer que o futuro tão pouco existe. Outra maneira de dar razão a Horácio.
Até há três semanas, com a chega do confinamento domiciliário de milhões de seres humanos, nada na história da civilização ocidental, nem desde a filosofia, a arte ou a literatura tinha ousado desdizer Horácio. Se alguma coisa fomos nesta vida foi sermos horacianos. Toda a poesia espanhola é horaciana. Góngora, Luis Cernuda, Gil de Biedma e um longo etc foram horacianos, que chega até aos nossos dias em poetas como González Iglesias ou Aurora Luque, entre muitos. Se amas a vida, tens de ser horaciano.
Só o catolicismo e agora o confinamento retardavam a urgência de viver a vida no seu presente mais real, sólido e necessário. Confinamento e cristianismo dão as mãos nesse aspeto: prometem-nos um futuro de libertação, que não chega.  Estou a exagerar? Claro que sim e assim espero, mas faço-o para que a gente que está confinada não esqueça que a sua renúncia ao presente é uma renúncia à grandeza da vida e o que não estará a viver hoje perder-se-á para sempre. As guerras foram infinitamente piores que o confinamento, mas eram horacianas. As guerras ainda intensificavam mais o carpe diem. Podias morrer a qualquer momento, a entrega às paixões da vida era cega e absoluta.
Mas que raio de inimigo haveria de aparecer a Horácio com o coronavírus. Temos de transformar as nossas habitações em mansões de festas, orgias e vida inventada. Um mundo sem Horácio é um mundo morto. O diferimento da vida para um futuro melhor recorda-me os totalitarismos. Temos de salvar Horácio desta peste horrível que nega o maior dom dos seres humanos: o gozo do tempo presente. “ (El País, link aqui)

Suspeito que, passando dos setenta, serei cada vez mais horaciano, ainda que com interrogações sobre a possibilidade do futuro se assemelhar ao que antecipávamos há dois ou três meses.

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