(A continuidade e agravamento das incidências da pandemia estão a provocar a emergência de posicionamentos que parecem apostados em contrariar referenciais e o nosso sentido de orientação. O fenómeno é mundial mas também desafia referenciais nacionais e estaria muito longe de admitir que o PCP se distinguiria nessa matéria).
Para além do negacionismo mais abjeto e estúpido, que projeta no espaço público manifestações que demonstram a que extremos a estupidez humana pode chegar e que esteve bem presente nas manifestações de massa na Alemanha contra a abordagem restritiva ao COVID-19, existe uma onda que poderíamos designar de “libertária” e que se insurge contra as restrições à liberdade que a pandemia trouxe consigo. A preocupação com a liberdade não tem preço e por isso esta posição deve merecer uma reação mais condescendente do que a implicada pelo mais puro negacionismo. Mas é um tosco desatino ignorar que a abordagem à pandemia não tem outro ensinamento relevante que não seja o de confinar quando as coisas se agravam e adotar as práticas mais coerentes com a redução do risco de disseminação e contágio. Posso até encantar-me com as reflexões mais filosóficas (como, por exemplo, as de Bernard Henry Levy) sobre o que significa o uso da máscara do ponto de vista da convivência social. Mas admitir que antes de uma vacina convincente existirá uma outra maneira de combater o vírus já entra no puro domínio da deriva e do desatino.
É esse mesmo desatino que leva um intelectual como Luís Aguiar Conraria a equiparar a Direção Geral de Saúde à PIDE DGS, o que mesmo ressalvando a relevância moral do caso que suscitou o comentário do agora cronista do Expresso, representa a perda definitiva do equilíbrio e do sentido de proporção das coisas. Bem sei que a pressão do cronista o pode obrigar a derivas panfletárias, mas o estabelecimento daquela equiparação é mais uma manifestação do desatino que parece ter apoquentado uma parte da sociedade portuguesa.
E alguém imaginaria que o circunspecto e conservador PCP se transformaria numa espécie de símbolo fora do tempo das posições libertárias mais puras em termos de regulação de eventos de massas em plena pandemia? Bem sei que o ódio que uma parte da sociedade portuguesa destila relativamente ao PCP modificou o debate em torno da festa do Avante numa peça rançosa e bolorenta e que pouca gente situou o evento no tipo de espaço que acolhe a festa. Mas será que alguém imaginaria o pioneirismo libertário do PCP, assumindo comportamentos de roleta russa que a correrem mal podem constituir uma machadada na resiliência que os comunistas têm apresentado? Por esta hora libertários americanos estarão espantados com esta companhia de último curso que o PCP trouxe à causa libertária em matéria de organização de eventos de massa em período pandémico.
Os referenciais de posicionamento estão tão instáveis que eu próprio receio sucumbir ao desatino.
Mas conviria parar para pensar sobre a aprendizagem de março até agosto e para compreender que, por mais voltas que engendrarmos, não haverá recuperação económica sustentada sem controlo do vírus. Ressalvadas as diferenças óbvias e cruciais entre modelos de abordagem pandémica como os da China, do Vietname e da Nova Zelândia e entre estes três países e a generalidade dos países que renunciou a prolongar confinamentos mais musculados, talvez tenhamos a surpresa de constatar que os mais determinados sanitariamente tenderão a recuperar mais depressa e sustentadamente em termos económicos.
Um conhecido epidemiologista conhecido, já não me recordo de que nacionalidade, referiu bem cedo que só no fim de termos controlado definitivamente o vírus poderemos avaliar qual foi a estratégia mais pertinente. O que é uma forma mais sofisticada de “prognósticos só no fim do jogo”. Mas o desatino só trará disfuncionalidades e perda de referenciais.
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