(O sempre acutilante Xosé Luís Barreiro Rivas recorre na sua última crónica a uma definição “behaviorista” de governar que continua a manter alguma atualidade e pertinência de aplicação aos desafios atuais da governação em Portugal. Explico-me.)
Citando:
“Na década de sessenta, no quadro das teorias ‘behavioristas’, a ciência política aproximou-se de uma definição que, por ser breve, funcional e compreensível, continua a dominar as abordagens atuais. E diz assim: governar é afetar os recursos públicos aos objetivos e necessidades de uma sociedade e gerir com êxito essa afetação. De onde se deduz que a avaliação do governo só pode ser concretizada com a análise do orçamento – volume, financiamento, elaboração, prioridades, sustentabilidade e equilíbrio – e em torno da sua posterior gestão e liquidação. Tudo o mais são desejos, slogans, considerações e dialéticas eleitorais que não pesam nada, nem a favor nem contra, na valoração do bom governo” (link aqui).
Não vou discutir em termos de ciência política a que é que a análise crítica desta conceção behaviorista da governação nos levaria. Vou simplesmente discutir o que é ela pode representar em termos de aplicação ao contexto atual que por cá se vai vivendo. E o momento não poderia ser mais convidativo.
Primeiro, estamos em pleno ritual de mais uma preparação e discussão de orçamento, para 2021. O Presidente da República força a barra falando da insustentabilidade de um chumbo orçamental, convocando uma geringonça renovada para a sua aprovação, independentemente dos acordos, entendimentos, disfarces ou “fazeres de conta” que o tornem possível. Já aqui escrevi que o contexto é mais grave do que o que acompanhou a apressada saída do ajustamento, a geringonça da época funcionou e as condições de reparação de danos são mais favoráveis a esse entendimento do que se os tempos orçamentais encontrassem um outro contexto menos punitivo. Pede-se criatividade e penso que o PSD agradecerá, pois o que tem para dizer é tão pontual e errático que precisa de se recompor nas autárquicas (se for capaz disso e se não tiver surpresas) para aspirar a algo de mais elaborado.
Segundo e esse é o principal desafio, quis o destino que a preparação do orçamento de 2021 acontecesse em plena discussão do que serão as necessidades nacionais para o futuro. E aqui também a particularidade do momento é dupla: trata-se de definir prioridades para aplicar o plano de recuperação e resiliência (a resposta estrutural da Europa aos seus problemas gerados pela pandemia) e, simultaneamente, preparar um período de programação de fundos estruturais (na prática as nossas políticas de desenvolvimento) com o horizonte 2030. Tenho visto pouca gente a refletir sobre esta convergência estrutural, tamanha é a pressa de chegar ao prato, nem sempre boa conselheira.
E a primeira grande interrogação da definição behaviorista de governar emerge com clareza. Os orçamentos são anuais, o ritual repete-se, a energia política esgota-se (ninguém liga pêveda à Conta do Estado, ex-post e pós-orçamental) e, por conseguinte, a tal alocação de recursos no plano do orçamento cruza-se com outras afetações de recursos, plurianuais, determinadas pelas mudanças estruturais (reparem que falo em mudanças e não em reformas, dada a toxicidade deste último conceito tal como a Comissão Europeia o aplica).
Algures no passado alguns tentaram impor uma lógica de orçamentação plurianual que não colou e nunca mais foi tentada.
Neste caso, trata-se de promover a resiliência e recuperação a pensar numa estratégia de desenvolvimento amplamente consensualizada. Tenho dificuldade em considerar o Plano Costa Silva e o que o Governo decidir dele fazer uma estratégia de desenvolvimento. E não me parece difícil conseguir um amplo consenso nacional sobre o que parecem as tais necessidades nacionais de que fala a definição behaviorista atrás enunciada.
Em tópicos sintéticos poderia dizer o seguinte:
- Dar sustentação, consolidação e alargamento da base de incidência (empresarial e territorial) do que de muito positivo se fez nos períodos de programação 2007-2013 e 2014-2020 (ainda em curso) em termos de políticas de inovação e competitividade, com mais incorporação de conhecimento e robustez de diferenciação no comércio internacional;
- Enquadrar e favorecer essas mudanças no plano empresarial e produtivo com um quadro abrangente de melhoria de qualificações da população ativa, com maior equilíbrio entre formação de jovens e de ativos adultos empregados e desempregados, a todos os níveis de qualificações, do robustecimento de qualificações básicas em termos de competências gerais até à formação superior e avançada, passando pelas qualificações intermédias fornecidas pelas formações profissionalizantes;
- Concretizar uma revolução nos cuidados sociais e de saúde primários, aproveitando os ensinamentos dos efeitos da pandemia, acomodando o desafio do envelhecimento e do isolamento, qualificando o SNS para os novos desafios e definindo de vez o lugar da saúde privada neste processo;
- Preparar a revolução dos sistemas de produção agrícola e industrial para os paradigmas da transição energética, da descarbonização e das mudanças climáticas, quebrando de vez a inércia que paira sobre estes sistemas, com particular relevo para a que domina o Ministério da Agricultura desde há muito tempo, aprovando projetos para o futuro como se não existisse uma crise climática;
- Modernizar o quadro institucional do apoio ao desenvolvimento, com uma administração central, regional e local mais transparente e sensível ao mérito da competência e qualificação, inserindo aqui a transformação digital das organizações e das empresas em termos de modelos de negócio;
- Definir prioridades de concentração de apostas no território de mais baixa densidade, combatendo o vírus da atomização;
- Aproveitar a onda do Plano de Recuperação para um novo “PEDIP” da modernização infraestrutural em Portugal, com destaque para o patamar ferroviário e das infraestruturas mais relevantes de suporte à competitividade.
Considero isto uma estratégia e não uma sucessão de “cruciais”, “essenciais”, “fulcrais” e “fundamentais” para parafrasear a irresistível rábula do Ricardo Araújo Pereira. É uma estratégia porque consigo visualizar e compreender interações virtuosas entre estas apostas. Integra a programação de Fundos Estruturais com o Plano de Recuperação e torna compatível a recuperação com uma visão estratégica de futuro. Muita gente se espantou com o pouco tempo que Costa Silva perdeu para apresentar o seu documento. Esta gente anda muito distraída com o que de bom tem sido produzido sobre opções de desenvolvimento e há muita gente madura para o compreender.
O grande problema é que depois dos fogachos de recorte estratégico, por vezes com demasiados fulcrais e fundamentais, regressamos sempre à ditadura do ritual orçamental, ano a ano, em que a política se esgota e onde é fácil, muito fácil, perder a Visão e o sentido de orientação estratégica.
Alguém tem de deslindar este nó ou este constrangimento, não importa.
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