segunda-feira, 21 de setembro de 2020

A CLAREZA DA TRANSPARÊNCIA

A “Circulatura do Quadrado” desta semana recebeu a visita do guru que o País se vai esforçando por incorporar através de sucessivas narrativas tão cheias de conhecimentos acumulados quanto de desconhecimentos concretos e ausência absoluta de um foco que tenha realmente a ver com uma qualquer “salvação do País”. Vale a pena ouvir o registo completo, que também teve aspetos pontualmente positivos como não podia deixar de ser. Mas houve uns minutos especialmente confrangedores na perspetiva a que acima aludo criticamente, os da interpelação de José Pacheco Pereira (sem dúvida pertinente, embora algo repetitiva por condicionada) e da correspondente resposta (?) do convidado. Dei-me ao trabalho de recolher o teor essencial do que ambos disseram nessas passagens.

 

Primeiro, José Pacheco Pereira:

“Em primeiro lugar, toda a gente reconhece o enorme esforço e o enorme trabalho que representa este Plano. Mas eu tenho muita dificuldade em conceber que este Plano possa ser aplicado em Portugal em 2020. Por uma razão: porque, embora essa questão também seja aqui levantada  há uma parte no princípio e há outra parte no fim que levanta as questões, ou pelo menos enumera as questões que eu aqui vou colocar, é mais do que óbvio que nós não temos uma Administração Pública, nem um funcionalismo público, nem um conjunto de estruturas do Estado capazes de cumprir nem um décimo deste programa. E, portanto, o problema deste programa é que, por um lado, tem medidas a mais – e portanto, perde um pouco o sentido e a orientação de uma ação política que depois as vai traduzir na prática; eu confesso que quando ouço dizer que houve mil e não sei quantas propostas de melhoria que foram acrescentadas ao documento inicial me preocupo, não vejo isso como um sinal de um grande dinamismo, vejo isso como um sinal de grande dificuldade de nós encontrarmos um foco em relação àquilo que este Plano deve cumprir, ou seja, verdadeiramente uma visão estratégica e não uma soma mais ou menos gigantesca de medida. E as minhas dúvidas centram-se em dois aspetos, que aliás, de alguma maneira, parecem acrescentados a este Plano mas não parecem estar estruturalmente associados a este Plano; por exemplo, disse agora que havia um grande problema de qualificação em Portugal, e há – a qualificação da mão-de-obra, por exemplo, é um dos aspetos do nosso atraso estrutural, mas não só, a qualificação também dos empresários, normalmente nós só falamos da mão-de-obra; mas, sendo assim, como é que nós esperamos que a nossa Administração Pública, construída de uma forma burocrática, construída sem critérios de mérito, construída muitas vezes por clientelismo político tem condições para poder cumprir nem que seja um décimo deste programa sem levantar problemas de clientelismo e problemas de corrupção; há, de facto, aqui uma referência, que eu acho de passagem, à corrupção mas, em Portugal, a não ser que haja uma mudança qualitativa e instrumentos de controlo muito rigorosos, atirar dinheiro, a quantidade de dinheiro que vem aí, no atual estado das coisas em Portugal significa mais corrupção. E, portanto, ou há um Plano muito claro para que a parte executável desta visão estratégica corresponda também a um processo de modernização muito significativa da Administração Pública, ou então a utilização de outsourcing ou de qualquer outro mecanismo para poder suprir as deficiências da nossa Administração, ou há desde início um mecanismo muito claro para pensar o problema da corrupção – a corrupção leva para aí um terço ou um quarto do dinheiro que cá chega, como aliás aconteceu em todos os financiamentos anteriores (...), e a ineficiência e a incapacidade encheu o País de obras inúteis, de obras que custaram muito mais caro do que aquilo que era preciso e um desperdício que um país como Portugal não pode suportar.” 

Depois, António Costa Silva:

“Eu penso que o Pacheco Pereira toca aqui num problema central da nossa vida política. Eu penso que nós temos de inaugurar aqui um novo ciclo. A democracia é um regime conflitual, mas é também um regime que funciona na base da confiança; confiança entre governantes e confiança entre governantes e governados. E eu penso que este vírus pôs em causa uma série de paradigmas, desde logo o próprio paradigma da segurança – hoje a segurança é a segurança também humana, a segurança dos desafios imensos que criou em torno da saúde, é a aceleração que fez da digitalização e das mudanças tecnológicas e nós temos que ligar tudo isso também no contexto da Administração Pública. E como é que isso se faz? Eu penso que a resposta, que foi notável do Serviço Nacional de Saúde e da Direção-Geral de Saúde, enfim, com todos os percalços pelo meio, é extremamente importante; e nós temos que ter confiança, é fundamental e não podemos deixar também que este vírus de certa maneira provoque uma erosão grande de todo o sistema como aquela que pode potencialmente provocar.

Mas há um outro elemento crucial, e está na última parte do documento. É a minha proposta: sobre todos os fundos que venham que haja um portal do Governo, da Administração Pública, que reporte para onde é que eles vão, quais são as entidades, quais são os critérios, quais são as taxas de execução, qual é a monitorização. E, se nós tivermos transparência e prestação de contas, nós vamos mudar tudo. Mais do que falarmos da corrupção, e eu concordo que é um problema fulcral do País, nós temos que ter mecanismos para minimizar a corrupção. E eu lembra-me sempre, eu que estive muito ligado especialmente na Fundação Gulbenkian ao Conselho de Desenvolvimento Sustentável, de um dos exemplos extraordinários que eu dava: era um ministro ugandês que foi primeiro ministro da Educação e depois ministro das Finanças; ele às tantas apercebeu-se que o dinheiro que mandava para as escolas desaparecia todo e depois fez uma coisa muito simples: determinou que em cada zona do país e em cada escola para onde dava dinheiro aparecesse lá a tabuleta ‘foi dado tanto, foi dado isto’ e, de repente, a corrupção, que estava em níveis elevados, baixou e baixou consideravelmente. A prestação de contas, a transparência é essencial.

E eu chamo só a atenção para que ontem, na apresentação dos contributos, o Senhor Primeiro-Ministro fez uma intervenção e eu penso que ele está muito sensibilizado relativamente a essa questão – ele disse claramente que até hoje o máximo que o País conseguiu executar em termos de fundos estruturais foi na ordem dos 3 mil milhões de euros; nós vamos ter, com os mais de 50 mil milhões que vêm, em média por ano 6-6,2; e portanto, a Administração cujo máximo que conseguiu fazer foi isso, tem em cima disso este desafio imenso e se não se adaptar, não criar um centro de competências, não mobilizar os melhores, não criar um balcão único, uma espécie de loja de cidadão, para ser o interlocutor direto das empresas, não fizer a monitorização dos fundos, não tiver um modelo de governança de como é que esses fundos vão ser aplicados, quais são as entidades que estão envolvidas, não desenvolver a agilidade em termos da implementação dos processos de digitalização, nós vamos ter problemas. Mas eu penso que os decisores políticos sabem disso perfeitamente; e há uma expectativa no País – nós estamos à frente da maior crise das nossas vidas e o País ou supera essa crise e sabe aplicar os fundos e sabe que os investimentos públicos têm que ser feitos baseados numa análise custo-benefício como fazemos nas empresas, que os investimentos têm que ser reprodutivos, que têm que atender àquilo que são os constrangimentos estruturais do País, ou se faz isso ou então nós vamos ter problemas sérios. E eu penso que o Senhor Primeiro-Ministro, com toda a sua astúcia e sabendo muito bem o que tem que fazer, indicou ontem com muita clareza que na cabeça dele isso é muito claro. Agora, os problemas existem e não vão desaparecer.

Só chamava aqui a atenção para duas coisas, que é o impacto das tecnologias – há um estudo muito claro da McKinsey que diz que a nova onda das tecnologias digitais pode ter um impacto dez vezes maior do que a Revolução Industrial e uma escala trezentas vezes maior, quando nós falamos de inteligência artificial, das máquinas que aprendem, deste tipo de tecnologias estamos a falar duma espécie de telescópios do século XXI que vão acrescentar muito em termos do pensamento, do conhecimento e da eficiência que vão trazer a todos os sistemas – em ligação com um outro fenómeno brutal que é a rede 5G – a nova rede das telecomunicações móveis, e é por isso que eu defendo muito a extensão da fibra ótica a todo o País –, que vai ter no paradigma da conectividade o mesmo efeito que a nuvem, que a cloud teve nos sistemas de computação e nos sistemas de informação, e isto em termos da produtividade, da eficiência dos processos e do controlo da informação vai ser algo que provavelmente vamos atingir um outro patamar. Se nós conseguirmos tratar a informação, extrair dela conhecimento e controlar todos os fenómenos que o Pacheco Pereira mencionou e muito bem, em termos da própria execução dos projetos e da eficiência na resposta, nós podemos mudar alguma coisa.”


Está percebido?

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