sábado, 5 de setembro de 2020

MISCELÂNEA A PARTIR DE TERRAS DE BASTO

 

(Não sou propriamente um fervoroso adepto de incursões de lazer pelo interior, mas reconheço a paz de espírito que ele proporciona. O ritual de uma ou duas curtas experiências de fim de semana por Terras de Basto, mais propriamente Cabeceiras de Basto, já faz parte das minhas rotinas. É nesse contexto mais distendido que se inserem as reflexões de hoje).

 

Um traço marcante da reflexão deste fim de semana é marcado pela poderosa entrevista do artista e ativista chinês Ai Weiwei, com o simbolismo estranho dela ter sido realizada no acolhimento prazenteiro de uma piscina alentejana. A demolidora expressão “vocês já estão todos infetados” trazida para o título da entrevista pela perspicaz Alexandra Prado Coelho deixa-nos profundamente abalados à medida que vamos cavando o sentido da expressão. A metáfora viral para descrever a influência chinesa no mundo ocidental é arrepiante e as revelações de Weiwei sobre o que ele designa de “Estado secreto” são estarrecedoras do ponto de vista do que elas significam de confronto entre a eficácia da abordagem chinesa à pandemia e os custos de cada indivíduo ou família, arrasados pela máquina trituradora e burocrática da abordagem chinesa. Mas a parte mais interessante da entrevista é sem dúvida aquela em que Weiwei desenvolve a sua tese segundo a qual, a partir da China ter aceite ser o mercado de trabalho do mundo, se assistir a uma cada vez mais poderosa influência sobre o modelo de consumo ocidental. Já por repetidas vezes alertei neste blogue para o que significa a norma de consumo operário e das pessoas com baixos e médios rendimentos em Portugal estar dominada por consumos de produtos chineses, como o comprova a espantosa proliferação de pontos de venda por todo o país com a marca China.

A crítica de Weiwei sobre o capitalismo ocidental (“O Ocidente é como uma família muito rica em que cada um tem o seu próprio quarto e o quinhão justo mas não se preocupam com os vizinhos da porta ao lado”) é demolidora e podemos entendê-la como uma antecipação profética ( só o tempo o dirá) de um definhamento provável do sistema. O ativista chinês é implacável acerca da tese que subjaz ao otimismo ocidental sobre os rumos de evolução da sociedade chinesa. O enriquecimento progressivo da sociedade chinesa determinaria um alargamento das classes médias e, com esse impulso, a destruição das bases do autoritarismo. Esta profecia ignorou os efeitos perniciosos da desigualdade crescente na sociedade chinesa e a capacidade de perpetuação do regime através da organização do processo de afetação das benesses. E refletindo sobre as maravilhas apelativas da piscina em que recuperava o fôlego para outros projetos, Weiwei brinda-nos com uma reflexão final, ao estilo de um uppercut demolidor que nos faz ver as estrelas e não aquelas das noites alentejanas: “Mas enquanto vocês aproveitam o sol na praia, os chineses estão a trabalhar para fazer as vossas toalhas, os vossos fatos-de-banho, o shampoo, a touca de banho. Por isso eles vão ganhar todo o dinheiro. Vocês têm o sol, que é ótimo, ficam bronzeados, vão ficar perfeitos nas fotografias. E eles até criaram o Tik Tok para que vocês possam apresentar a vossa imagem nas redes sociais. Que belo filme de Hollywood”.

Outro traço marcante deste fim de semana prende-se com a figurinha triste de uma coleção de personalidades que resolveram subscrever um texto testemunho sobre os malefícios da educação estatal a propósito da disciplina de Cidadania. Doeu-me que baste a conjugação de boas vontades de personalidades como Adriano Moreira, Manuel Clemente, Alberto Castro e Joaquim Azevedo (já que a presença do nome de Cavaco Silva me bastaria para rejeitar a abordagem), só para citar os que me merecem maior afeição e respeito. O que me choca é o desajustamento entre a afirmação empolgada da defesa da liberdade das famílias para informação a educação dos seus filhos que uniu estas cabeças bem-pensantes e o conteúdo do programa que resulta de uma lei de bases politicamente aprovada. É manifestamente um tiro ao lado do essencial e pode representar uma passadeira vermelha para a rejeição do ensino de outras matérias como por exemplo a biologia evolucionista ou o estudo do Holocausto que personalidades tipo Ventura ou do pai de Guimarães poderão assumir no futuro próximo.

Tenho de confessar que nunca fui adepto de associar o meu nome a este tipo de iniciativas, sobretudo porque me tenho em má conta (salvo seja). Ou seja acho que o meu nome não influencia ninguém e por isso acho que faço um autêntico serviço público não contaminar a opinião pública com assinaturas irrelevantes. E acho que vos devo dizer que estas coisas vistas de terras de Basto, com a distância suficiente face aos centros de opinião dominante adquirem uma outra clareza.


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