quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

ANNE CASE





(A estimulante entrevista da Professora Anne Case de Princeton ao The Region do Federal Reserve Bank of Minneapolis é um pretexto para trazer a este blogue um tema sobre o qual tenho vindo a acumular leitura e reflexão. Trata-se da cada vez mais significativa evidência de que a economia é o domínio científico em que a mulher é mais discriminada, tema por si só demasiado importante para estar ausente deste espaço )

Anne Case é uma economista fascinante. Talvez seja mais conhecida por ser mulher e coautora do Nobel de Economia Angus Deaton e essa evidência faz infelizmente parte do tema que me traz hoje a este espaço. A sua entrevista ao The Region do Banco da Reserva Federal de Minneapolis (link aqui) foi o pretexto para aqui acusar a relevância do tema, particularmente nos EUA. A academia está a ser abanada por ondas de choque provocadas por alguma investigação nos dois últimos anos. E isso faz parte de um movimento mais amplo em que a denúncia de processos de violência doméstica e de acosso sexual de que as mulheres americanas têm sido vítimas tem aparecido com uma força inusitada.

Gosto particularmente do modo como Anne Case vê a economia e isso transparece na entrevista atrás citada, onde ela anuncia ao que vem logo no início da mesma: “O que eu gosto na economia é que podemos seguir a nossa intuição. Ver até onde os dados e a teoria nos podem levar. Descobrir coisas que nunca sonhámos que poderiam existir”. Gosto sobretudo desta ideia da economia como processo de descoberta. Case tem os dons necessários para assumir este modo peculiar de ver a economia. É uma economista rigorosíssima nos métodos quantitativos, mas aos quais junta uma sensibilidade e uma intuição notáveis. A essa combinação de rara oportunidade devemos hoje algumas das ideias mais promissoras em termos de desenvolvimento de políticas públicas em domínios tão diversificados como as relações entre condições de saúde na infância e comportamentos de morbilidade ao longo da vida, os efeitos devastadores da sida e de outras doenças e, mais recentemente, a interessante e reveladora descoberta de que a taxa de mortalidade está a subir entre os brancos de meia-idade nos EUA e que uma das manifestações desse fenómeno é o suicídio. A ideia de suicídio é aqui apresentada em termos amplos, envolvendo não só a eliminação da própria vida mas também os comportamentos aditivos de drogas e álcool que conduzem ao mesmo efeito.

Uma das facetas mais curiosas da investigação de Anne Case é a introdução da intergeracionalidade, relacionando o que se observa no contexto da infância (proteção da mãe, condições de saúde e de educação) com as suas consequências ao longo da vida. Case é brilhante no modo como combina sistematicamente as duas perspetivas da relação entre condições de saúde e desempenho económico: o baixo rendimento tende a gerar deficientes condições de saúde e vulnerabilidade à doença e esta tem, por sua vez, impacto na geração de rendimento.

Como seria de esperar e embora me pareça que, dada a relevância e notoriedade da sua própria investigação, Anne Case não se sinta particularmente atingida por conviver e trabalhar com um Nobel de Economia, ela está particularmente atenta à discriminação da mulher no seio da disciplina. O tema da discriminação da mulher no domínio disciplinar da economia, e não estou a falar da fraca representação da mulher na gestão e administração das empresas (partilho com duas mulheres, que aproveito para saudar, essa função), tem agitado a academia americana nos tempos mais recentes. A Universidade de Berkeley tem-se mostrado particularmente ativa nesta matéria, veja-se por exemplo o Women in Economics in Berkeley (link aqui). Não por se tratar de um simples movimento reivindicativo do tipo #ME TOO,(link aqui) por exemplo, mas sobretudo porque vieram a terreiro alguns trabalhos de investigação relevantes que não podem ser ignorados.

O pano de fundo para todo este debate é marcado por duas tendências claras, aparentemente contraditórias: por um lado, a feminização da Universidade é evidente, ainda tenho na memória recente a imagem dos anfiteatros de 60 a 80 alunos nas minhas aulas teóricas e o padrão dos rostos femininos que os caracterizava; por outro lado, é hoje notório o menor peso das mulheres nas profissões e empregos científicos STEM (ciências, tecnologias, matemáticas). Uma leitura apressada diria imediatamente: a progressiva formalização e matematização da economia colocou por razões interpostas a mulher em minoria no domínio científico da economia. A questão é mais complexa e a investigação disponível é mais vasta envolvendo questões como: a subalternidade e inferioridade da mulher em termos de acesso a posições de topo na academia (tenures); o melhor aproveitamento em termos de carreira por parte dos homens das medidas de conciliação da vida profissional e familiar, designadamente os períodos de assistência na maternidade; a maior penalização relativa que as mulheres experimentam em processos de coautoria de artigos científicos; o diferente tratamento, com penalização, que experimentam em matéria de publicação em artigos com prévia recensão crítica de pares (peer review) e tantos outros. O duplo número de Natal e Ano Novo do Economist (link aqui) dedica a esta questão um bom resumo do que a investigação tem oferecido na matéria. E fá-lo provocatoriamente, interpelando a economia por não respeitar intramuros o que vai apregoando em matéria de comportamentos racionais e de otimização.

Mas a investigação mais criativa sobre o tema (não acusada no artigo do Economist, o que me dá um certo gozo) é a demostrada por uma aluna Phd de Berkeley (orientada por David Card) (link aqui), Alice Hu de sua graça, que com base em software de muito recente geração analisa o modo como a academia (neste caso Berkeley) trata as mulheres e os homens na sua conversação diária. Aliás, é promissor que sejam estudantes de doutoramento a prosseguir essa onda de investigação, o que mostra que pelo menos não viram o seu interesse pelo tema barrado pelos seus orientadores (as).

A base de informação (uma originalidade) do trabalho de Alice Fu é o chamado Economics Job Market Rumors (EJMR, link aqui), que não é mais do que um fórum online, essencialmente frequentado por alunos de doutoramento que trocam impressões e informação sobre oportunidades de emprego e resultados de submissão de candidaturas. Apesar de se tratar de um fórum regulado, do qual são removidos todas as manifestações de ordinarice foleira, a análise de Fu demonstrou a existência clara de estereótipos de género, penalizando a mulher. Ou seja, quando estão mulheres em jogo, o discurso captado mostra que ele tende a tornar-se menos académico e profissional e a resvalar para a dimensão pessoal (dispenso-me de explicitar essas dimensões). O impacto na academia foi significativo e o tema parece dar mostras de não ficar por aqui, perdido nas malhas da defesa reativa da academia, dominadas pelos homens. A própria Anne Case regista com satisfação o facto da American Economic Association ter criado um comité ad-hoc que apresentará e discutirá o seu trabalho na sua reunião anual (largamente participiada) do próximo mês de Janeiro. Na mesma onda, o indiscutível Journal of Economic Perspetives interessou-se também pelo assunto. Num artigo de 2016, Amanda Bayer de Swarthmore e Cecilia Rouse de Princeton demonstraram a falta de diversidade na profissão (link aqui).

Por tudo isto, numa tradição muito americana mas que é saudável, a entrevista de Anne Case constitui um documento com múltipla relevância. Não fala uma economista qualquer e até tem mais significado por Anne Case ser mulher de um Nobel de Economia. O IPAP não poderia deixar em claro a sua publicação.

Sem comentários:

Enviar um comentário