sábado, 2 de dezembro de 2017

A TENTAÇÃO DA ACADEMIA




(O pacote fiscal que Trump está a fazer passar pelas instâncias políticas americanas está a suscitar um amplo debate entre os macroeconomistas. Acompanhando de perto esse debate, compreende-se facilmente que quem se afirma frequentemente à margem da política aparece afinal largamente comprometido com a preocupação de dar ao pacote fiscal de Trump um sentido de racionalidade económica, quando afinal a agenda subjacente é claramente outra.)

A agenda económica de Trump não é propriamente um exemplo de elaboração. Aparentemente ela tem o propósito de agradar aos descontentes com a desindustrialização que a economia americana tem vindo a experimentar nas últimas décadas. Descontentes que se transformaram em apoiantes à espera dos coelhos que o mestre se propôs tirar da cartola. Nessa linha da frente, o homem tem ladrado mais do que mordido. No início, avançou com alguns (poucos) processos mediativos de ameaça a empresas que tinham processos de deslocalização em curso. Rapidamente os abandonou. Depois, atirou-se aos macro acordos comerciais regionais, com a mesma ladainha, suster a perda de empregos da economia americana, que nós sabemos resultarem mais do progresso tecnológico do que do comércio internacional. Ensaiou depois algumas guerrinhas com o Canadá com o mesmo propósito. Mas a agenda não é propriamente essa. Trump está no poder para defender os interesses dos empresários que partilham o seu mundo. Tão simples como isso. O que revoluciona completamente os princípios do lobbying e da captura de interesses. Para quê lobbying e captura de interesses quando se pode governar diretamente sem intermediações que dão sempre trabalho a fidelizar e a financiar? Tão simples como isso.

O generoso pacote fiscal que Trump submeteu às instâncias políticas americanas constitui o melhor indicador dessa agenda assim concebida. A administração Trump desdenha claramente das elites da macroeconomia. Coerentemente, já que a sua eleição viveu dessa rejeição. Mas quando começaram a ser conhecidos os contornos mais efetivos do pacote fiscal, muitos economistas alertaram para o grande embuste que ele representava. A redução de impostos servia claramente os mais ricos e poderosos. Mas apesar de rejeitadas pelo populismo americano, as elites macroeconómicas dão jeito, não para pensar a tomada de decisão, mas antes para validar o que já foi decidido. Nestas ocasiões, há sempre quem esteja disposto a fazer o jeito, mesmo que a um personagem tão caótico e perigoso como Trump. E, regra geral, para além de arraia-miúda que consegue uns minutos de presença nos media, há sempre alguns graúdos e respeitados, regra geral também pertencendo ao grupo dos que religiosamente se intitula de não-político, a-político ou politicamente agnóstico. É o caso de gente poderosa na academia como Robert J. Barro, Michael J. Boskin e John P. Taylor que com mais cinco companheiros recorreram às páginas do Wall Street Journal (mas onde é que havia de ser?) para glorificar o pacote fiscal de Trump. Fazendo-o, lançando para a opinião a pseudodemonstração de que o pacote irá representar um importante estímulo do crescimento económico e praticamente ignorando as possíveis implicações do programa em termos de agravamento do défice externo e dos níveis de endividamento do país. Esperava-se que gente deste calibre de formalização académica aparecesse com modelo próprio, devidamente explicitado para viabilizar o escrutínio amplo e rigoroso, pois de folhas EXCEL com bugs estamos fartos (não sei se me percebem …). Pois não. Os graúdos recorrem pelo contrário a modelos de outrem (incluindo a OCDE) em termos que se prestam a muitas dúvidas, do tipo de utilizarem alternativas de maior crescimento sem explicar devidamente porque não consideraram as hipóteses/cenários de menor crescimento.

Lawrence Summers não será propriamente um santo nestas matérias. Mas rigor e frontalidade nestas matérias não lhe faltam. Em companhia de Jason Furman (ambos com filiação em Harvard) e utilizando agora o Washington Post e o Financial Times (tudo é simbólico neste debate), os dois economistas interpelam o outro grupo (link aqui e aqui), a bem de um debate franco e rigoroso. Resposta e contrarresposta estão já no ar e prontas para análise. Não é de facto muito convincente a esperança do grupo pró-Trump em efeitos consideráveis sobre o crescimento económico e até algo suspeita a maneira como descartam os cenários de crescimento menor estudados pelas suas referências (link aqui). E certamente ainda mais suspeitos, quando sugerem que o pacote irá pagar-se a si próprio, sem impacto no défice nem no nível da dívida.

É por estas e por outras que bem compreendo amigos provenientes de outras academias (de outras ciências) quando desdenham da pretensa  cientificidade com que alguns macroeconomistas se apresentam nos respetivos universos ou mesmo outros universos disciplinarmente mais amplos. A pretensa validação do pacote fiscal de Trump mais uma vez vem mostrar que os pretensamente politicamente agnósticos são afinal os mais vendáveis para dar uma mão a agendas que afinal são mais simples do que parecem. E o pior é que há quem nelas vote, sem pestanejar.


Sem comentários:

Enviar um comentário