domingo, 17 de março de 2019

A BANCA E A DEMOCRACIA



(A banca e os seus pontos mais obscuros, do passado e do presente, consolidam-se como um dos fatores mais nocivos da degenerescência da perceção que os cidadãos constroem da política em democracia. A saga do BES-Novo Banco tem-se encarregado de prolongar no tempo essa ameaça.)

Se nos quisermos entregar a um exercício de curiosidade, não necessariamente mórbida, de mapear o posicionamento da sociedade portuguesa que se pronuncia nos jornais, na televisão, na rádio, nas redes sociais no que respeita ao terreno minado do BES não será difícil identificar os que, com jeitinho, poderiam branquear as malfeitorias dos senhores do BES. Diria mesmo que, a pretexto das falhas da regulação e supervisão e da desgraçada experimentação da figura da Resolução, esse número é bem mais elevado do que os procuram, porfiadamente, dizer que os grandes senhores disto tudo iam nuzinhos de todo. Tenho para mim que muito da boa gente que nesta sociedade portuguesa que gosta de estar próximo do poder, não do que governa, mas do que manda, estaria disposta a desculpar Ricardo Salgado e seus artesãos de falcatruas a troco da crucificação do abnegado, por vezes desorientado e cada vez mais isolado Governador do Banco de Portugal, apesar da sua justa última vitória em sede de Tribunal Administrativo.

Claro que para toda esta hipocrisia de pacotilha muito contribuiu a experiência da Resolução e não tenho visto até agora qualquer perspetiva crítica desassombrada sobre esta colocação de Portugal em situação de cobaia laboratorial. Para o fazer o BCE não pode ficar fora da fotografia. O mentor do crime, que eu saiba, é tão culpado como o que executou a medida do mandante e aqui nem PSD nem PP nem o próprio PS podem sacudir a água do capote. O problema é que para qualquer um de boa-fé a nacionalização da banca deixou recordações traumáticas e a experiência Socrática da Caixa Geral de Depósitos assusta e incomoda. Por isso, tenho de concordar que entre a liquidação do banco, a sua nacionalização para uma eventual venda futura e a desconhecida figura da resolução a decisão implicaria sempre um desgaste de grandes proporções. Por outro lado, aparentemente a solução da Resolução tinha lógica. Tratava-se de sujeitar a banca a pagar os desmandos de alguns dos seus pares. Mas quando entre esses pares há exemplos de quem procurou avisar em devido tempo de que algo se passava na prática do BES as complicações aumentam. E, mais ainda, quando um dos pares é um banco público, a CGD, toda a conversa a partir daí é tudo menos linear. Os fenómenos de “risco moral” (moral hazard) têm aqui um campo fértil. Os resgates beneficiam sempre os infratores, sejam eles pagos à custa do Estado, ou à custa dos pares. Mas apesar de todas estas interrogações, admito que a intervenção pública direta no BES tivesse sido mais disciplinadora, mas com o jogo quase acabado é mais fácil opinar.

O principal fator de perturbação é o que se tem passado no pós-Resolução. A venda ao Lone Star é toda ela um prodígio de hipocrisia. Também aqui, embora o queiram dissimular, PSD, PS e Banco de Portugal estão enterrados até ao pescoço. Estamos a propiciar à luz do dia uma claríssima transferência de recursos do sistema financeiro português para o exterior à luz sabe-se lá que princípios. Gostaria também de compreender as imparidades agora (???) descobertas no Novo Banco. Atendendo à situação económica vivida após a venda, não me parece que tais imparidades estejam associadas a um risco bancário normal. São fantasmas do passado, culpas pesadas que estavam no armário do BES e que foram colocados sabe-se lá com que critérios no chamado “banco bom”. À medida que se vai conhecendo melhor o que estava debaixo do tapete, compreende-se que os resgates do sistema financeiro em Espanha e na Irlanda foram mais acutilantes e menos para impressionar o contribuinte. Ou seja, a competência reinante no nosso sistema financeiro deixa algo a desejar e está pelo menos em desconformidade com a sua prosápia e política autoassumida de remunerações e benesses.

Bem pode o inefável Jorge Coelho a pregar agora no Circulatura que não há economia com desempenho elevado que não assente num sistema financeiro à prova de qualquer suspeita. Mas o que é importante não esquecer são os custos que os Portugueses têm vindo a suportar para assegurar essas condições. Começam a estar para além do que é tolerável em democracia. Aliás, hoje, com a situação macroeconómica a evoluir como é conhecido, as interrogações sobre a persistência de situações menos claras na banca é fonte de contínua deterioração da confiança nas instituições políticas da democracia. É um custo que não está estimado. Para cúmulo, a aplicação da justiça continua lenta, com a recente decisão do Tribunal Administrativo a amenizar a frustração. Por mais dúvidas que possa alimentar quanto à eficácia da supervisão de todos estes processos, recuso-me a colocar no mesmo plano as culpas do regulador e do infrator. Não estão ao mesmo nível, como o pretendem os branqueadores de serviço das práticas do “Senhor disto tudo”.

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