segunda-feira, 18 de março de 2019

O SENHOR MAJOR TRAPERO

(El País)


(Já não dá para ignorar. O prolongamento do julgamento em Madrid dos políticos catalães acusados de rebelião e outros crimes de incumprimento da Constituição espanhola pela realização do referendo independentista do 1 de outubro de 2018 não pode ser dissociado da perigosa deriva política observada em Espanha. Continuo entretanto a pensar que apresentar o julgamento, para muitos, político, dos responsáveis catalães como uma manifestação dessa deriva em curso é ainda mais perigoso e não corresponde a uma interpretação política correta do alcance do independentismo catalão.)

Nunca escondi neste blogue a minha convicção de que existe um grande diferencial de confiança entre o justo alcance do catalanismo como movimento de afirmação cultural e política, que pode até integrar uma dimensão independentista possível, e o aventureirismo da esmagadora maioria dos protagonistas atuais do independentismo catalão que forçou o referendo do 1 de outubro e toda a série de ações de agit pro que habilmente foram tecendo. Tenho para mim que essa deriva matou por muitos anos a força transformadora do catalanismo. E não tenho qualquer dúvida que essa deriva assenta num supremacismo de contornos bastante perigosos, que não podia deixar de suscitar a reação da outra Espanha. Também acho que essa posição não é maioritária na Catalunha, embora a gestão política de Rajoy tudo tenha feito objetivamente para a tornar possível. Puigdemont é o rsoto mais visível dessa deriva, mas nas franjas mais radicais do independentismo também se podem identificar protagonistas dessa deriva aventureirista. E também, como o escrevi com todas as letras, nessa reação da outra Espanha há que distinguir entre a Espanha que se sentiu naturalmente insultada por esse supremacismo e a Espanha dos velhos demónios do espanholismo fascista, saudoso de Franco e da Falange, centralista até à medula, que se acomodara, à espera de melhores tempos, no PP de Rajoy. Por isso, comungo com a posição de Pacheco Pereira de que podem vir de novo maus ventos da Espanha vizinha, mas estou em absoluto e total desacordo com o branqueamento do aventureirismo e das derivas independentistas.

Também o referi oportunamente que a decisão infeliz de Rajoy de judicializar a prevaricação do 1 de outubro na sequência da aplicação do artigo 155º da Constituição Espanhola foi a cereja no bolo da vitimização que os independentistas precisavam para a sua comunicação internacional de que a Espanha tem presos políticos. Não tenho quaisquer complexos de esquerda nesta matéria, nem qualquer reputação beliscável por essa posição. Os prevaricadores e incumpridores de uma Constituição democrática como o é a espanhola, internacionalmente reconhecida, não são, meus senhores, presos políticos com a conotação que lhe queremos dar para a associar ao despertar dos demónios a que me referi anteriormente.

A judicialização do processo que Rajoy imprimiu ao seu desenvolvimento tem consequências imprevisíveis, até porque o independentismo catalão, tal como está neste momento organizado em termos de pensamento e de esticar a corda, já mostrou que utilizará a tal cereja da vitimização até às suas últimas consequências. Prova-o o arrojo, que deixou Madrid estupefacta, da manifestação realizada em plena capital, ocupando o símbolo do madridismo, tão em baixo pelo desempenho irreconhecível do Real, em protesto veemente contra o julgamento.

No seio de todo este processo de ajustamento das relações das autonomias regionais com um estado centralista que regionalizou a contragosto dos mais ultras e largamente impulsionado pelos reformistas da Espanha das nações, há um corpo catalão que suscitou particular atenção. Estamos a mencionar os Mossos d’Esquadra, a força policial autonómica da Catalunha. Já se tinha percebido que ainda antes do referendo que conduziu á aplicação do 155º, sobretudo quando as Ramblas foram palco de um ignóbil ataque terrorista, e em algumas escaramuças à medida que o choque frontal entre Madrid e a Generalitat se tornou mais forte, a ação dos Mossos d’Esquadra cruzou-se em conflito com a ação da polícia nacional. No eclodir do próprio referendo foi visível a inação daquele corpo policial, embora em algumas situações fosse compreensível a sua preocupação de não acirrar ânimos. Mas quando os Comités Revolucionários do independentismo catalão mais radical começaram a fazer sentir a sua intervenção mais violenta, aliás objetivamente consentida pela Generalitat de Torra, começou-se a perceber melhor a situação insustentável em que o independentismo estava a colocar a polícia autonómica.

Por isso, era com alguma expectativa que se aguardava o testemunho do Major Trapero, que comandava aquele corpo policial no 1 de Outubro. Ao longo do seu interrogatório, Trapero referiu que, uns dias antes do referendo e perante as perspetivas da sua consumação, tinha os Mossos d’Esquadra preparados para executar uma ordem que tivesse a sua origem no Tribunal de Justiça Superior da Catalunha. Questionado acerca de que ordem se trataria, Trapero referiu que seria a prisão de Puigdemont e dos restantes conselheiros. Esperaram essa ordem mas a mesma não veio.

Creio que estas declarações de Trapero ficarão para os anais da compreensão da crise espanhola induzida pelo problema catalão como um dos mais significativos testemunhos que passaram pelo julgamento de Madrid. Coloco este testemunho ao lado, em termos de importância, do testemunho do líder basco que veio referir a sua incompreensão pelo facto de Puigdemont ter recusado em cima da linha o seu acordo a uma via negocial que tinha coordenado.

O filme segue dentro de momentos, mas com uma significativa mudança na audiência. A direita espanhola ultra do VOX afia as garras, o PP está cagadinho de medo e cheio de amores por imitar e não perder espaço e o CIUDADANOS, aparentemente tão puro nos seus intentos de modernização anticorrupção, tem-se atolado nas trafulhices e irregularidades de várias das suas eleições primárias.

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