(As interrogações que o modelo de desenvolvimento chinês suscita,
a argúcia e criatividade de Branko Milanovic e o fascínio da descoberta na
blogosfera conduziram-me ao reencontro com um autor de cabeceira de outros
tempos, Giovanni Arrighi. Um reencontro algo afetivo com leituras e pesquisas noutro período da minha
vida intelectual, onde também se fala de Adam Smith e Marx. Mas que caldinho
está aqui preparado!)
Contextualizemos o que vos pode parecer uma mistura algo caótica.
Conforme é percetível, Branko Milanovic é um economista que sigo com
regularidade. Faço-o não apenas porque os seus contributos para a compreensão
da dimensão mundial da desigualdade são incontornáveis. Se quisermos apreender
que mundo global está a formar-se, por exemplo, do ponto de vista das implicações
de estar ou não a formar-se uma classe média mundial é à investigação de Milanovic
que temos de recorrer. Mas o seu foco nas questões da economia mundial
determina que seja um economista particularmente conhecedor da história do
desenvolvimento do capitalismo antes e depois da Revolução Industrial. Depois,
o facto de se ter licenciado e doutorado na antiga Jugoslávia torna-o também um
profundo conhecedor de outras civilizações que não as ocidentais.
Num dado período da minha formação académica pós licenciatura, as questões
da história da formação da economia mundial e dos seus sucessivos estádios de evolução
e das correspondentes relações centro-periferia que alimentaram constituíram uma
razão de procura constante de mais conhecimento sobre a matéria. Foi tempo de mergulhar
em Braudel e em economistas historiadores mais contemporâneos tais como
Immanuel Wallerstein, Samir Amin, Giovanni Arrighi, André Gunder Frank (então proibido
por questões políticas de pisar solo americano), devorados em inglês, francês
ou mesmo em espanhol quando o acesso aos originais era difícil nas nossas
debilitadas bibliotecas. O meu colega de blogue, embora mais novo do que eu,
ainda partilhou esse fervilhar de inquietação e de leituras associando as questões
do desenvolvimento e do subdesenvolvimento às da história económica mundial de
influência marxista. Bons tempos de uma certa inocência política.
Por essas andanças bibliográficas de pesquisa, um tema sempre modelou o meu
interesse, curiosidade e procura de fundamentação. Estudando de perto civilizações
milenárias como a chinesa ou a indiana, era fácil concluir que o desenvolvimento
comercial e de mercado atingiu nessas paragens graus de desenvolvimento, de
pujança e de diversidade que as sociedades ocidentais estavam muito longe de atingir
quando a periodização da história situa o nascimento do capitalismo. Ou seja, o
chamado desenvolvimento do capitalismo acontece com dimensões e intensidade de desenvolvimento
de relações de mercado claramente mais recuadas do já atingido nas tais civilizações
milenárias. Essa evidência histórica que só a dimensão histórica da economia
permite compreender em todas as suas implicações (history matters!) suscita duas reflexões: primeiro, algo de muito
profundo terá de ter acontecido para explicar a interrupção que essas economias
experimentaram no advento do capitalismo (razões de fechamento sobre si próprias,
essencialmente); segundo, é bom recordarmos essa evidência do desenvolvimento passado
das relações de mercado para compreendermos o acordar de sopetão que economias
como a chinesa experimentaram em tempos mais recentes. Afinal eram gigantes
adormecidos em termos de desenvolvimento e extensão do mercado.
Ao contrário do que Marx sempre admitiu, o desenvolvimento da economia
mundial com alargamento dos mercados não foi concretizado com a simples extensão
das relações de produção capitalistas que foram geradas a partir da génese do
capitalismo. A economia mundial alargou-se com uma extrema diversidade de
modelos. É natural que por isso que, hoje, com o ressurgimento chinês face a
esse longo sono do passado, se questione e comparem os modelos de
desenvolvimento capitalista a ocidente e a oriente, embora pouca gente questione
que o centro dinâmico do mundo se está a passar para oriente.
É em parte esse debate que Milanovic está a revisitar em torno de um novo livro
que está a preparar (com saída esperada em 2019) e que terá por título esperado
“Capitalism, alone” (link aqui). Nessa preparação, Milanovic regista a relevância de uma
obra de um daqueles autores de cabeceira de outros tempos que mencionei anteriormente,
Giovanni Arrighi: Adam Smith in Beijing – Lineages of the Twenty-First Century,
Verso, Londres e Nova Iorque, 2007, que permaneceia adormecido na estante aqui
ao lado, já colocado atrás de uma nova frente de livros. Recordo-me que ensinava
os contributos de Arrighi para explicar a deterioração dos termos de troca dos
produtos exportados pelos países mais pobres e subdesenvolvidos com um misto de
religiosidade e de abertura de espirito. “L´échange Inégale”
(A Troca Desigual) era uma obra fascinante e recordo-me que era das matérias
com maior recetividade e atenção por parte dos alunos. Pois a obra de Arrighi
recuperada por Milanovic compara os modelos de crescimento a ocidente e a
oriente, estudando o modelo chinês como o mais representativo. Arrighi, por sua
vez, retoma as diferenças que ele considera existirem entre um processo de
desenvolvimento de uma economia de mercado e o desenvolvimento capitalista
propriamente dito. Tendemos a confundir os dois conceitos porque se perdeu a
tradição de uma ciência económica com história em parceria. Mas o que é
verdadeiramente curioso é que a China se arrisca a ser o laboratório mais
acabado do modelo de desenvolvimento preconizada por Adam Smith. Vale a pena citar
umas linhas do próprio Arrighi:
“(…) a essência desta
dinâmica é um processo de progresso económico puxado por ganhos de produtividade
abrindo caminho a uma divisão do trabalho em alargamento e em aprofundamento só
limitada pela extensão do mercado. À medida que o progresso económico aumenta
os rendimentos e a procura efetiva, a extensão do mercado aumenta, criando por
sua vez novas fases de divisão do trabalho e de progresso económico. Com o
tempo, todavia, este círculo vicioso enfrenta os limites impostos à extensão
do mercado pela escala espacial e institucional do processo. Quando esses
limites são atingidos, o processo entra numa armadilha de equilíbrio de nível
elevado. Acontece que se a Europa e a China estivessem ambas a mesma dinâmica
Smithiana, o verdadeiro quebra-cabeças não consiste em saber porque é que a
China foi apanhada numa armadilha de equilíbrio de nível elevado, mas antes porque
é que a Europa escapou a essa armadilha através da Revolução Industrial”. (pag.25).
Fascinante, não? E também admito que muito boa gente achará que esta
interpretação do Smith da divisão do trabalho potenciada ou bloqueada pela
extensão do mercado parece chinês quando confrontado com a vulgata da mão invisível.
Mas isso meus caros é a abertura e abrangência da formação de base que o
explicam.
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