quarta-feira, 21 de novembro de 2018

REGRESSO ACIDENTAL A UM TEMA DE OUTROS TEMPOS



(As interrogações que o modelo de desenvolvimento chinês suscita, a argúcia e criatividade de Branko Milanovic e o fascínio da descoberta na blogosfera conduziram-me ao reencontro com um autor de cabeceira de outros tempos, Giovanni Arrighi. Um reencontro algo afetivo com leituras e pesquisas noutro período da minha vida intelectual, onde também se fala de Adam Smith e Marx. Mas que caldinho está aqui preparado!)

Contextualizemos o que vos pode parecer uma mistura algo caótica.

Conforme é percetível, Branko Milanovic é um economista que sigo com regularidade. Faço-o não apenas porque os seus contributos para a compreensão da dimensão mundial da desigualdade são incontornáveis. Se quisermos apreender que mundo global está a formar-se, por exemplo, do ponto de vista das implicações de estar ou não a formar-se uma classe média mundial é à investigação de Milanovic que temos de recorrer. Mas o seu foco nas questões da economia mundial determina que seja um economista particularmente conhecedor da história do desenvolvimento do capitalismo antes e depois da Revolução Industrial. Depois, o facto de se ter licenciado e doutorado na antiga Jugoslávia torna-o também um profundo conhecedor de outras civilizações que não as ocidentais.

Num dado período da minha formação académica pós licenciatura, as questões da história da formação da economia mundial e dos seus sucessivos estádios de evolução e das correspondentes relações centro-periferia que alimentaram constituíram uma razão de procura constante de mais conhecimento sobre a matéria. Foi tempo de mergulhar em Braudel e em economistas historiadores mais contemporâneos tais como Immanuel Wallerstein, Samir Amin, Giovanni Arrighi, André Gunder Frank (então proibido por questões políticas de pisar solo americano), devorados em inglês, francês ou mesmo em espanhol quando o acesso aos originais era difícil nas nossas debilitadas bibliotecas. O meu colega de blogue, embora mais novo do que eu, ainda partilhou esse fervilhar de inquietação e de leituras associando as questões do desenvolvimento e do subdesenvolvimento às da história económica mundial de influência marxista. Bons tempos de uma certa inocência política.

Por essas andanças bibliográficas de pesquisa, um tema sempre modelou o meu interesse, curiosidade e procura de fundamentação. Estudando de perto civilizações milenárias como a chinesa ou a indiana, era fácil concluir que o desenvolvimento comercial e de mercado atingiu nessas paragens graus de desenvolvimento, de pujança e de diversidade que as sociedades ocidentais estavam muito longe de atingir quando a periodização da história situa o nascimento do capitalismo. Ou seja, o chamado desenvolvimento do capitalismo acontece com dimensões e intensidade de desenvolvimento de relações de mercado claramente mais recuadas do já atingido nas tais civilizações milenárias. Essa evidência histórica que só a dimensão histórica da economia permite compreender em todas as suas implicações (history matters!) suscita duas reflexões: primeiro, algo de muito profundo terá de ter acontecido para explicar a interrupção que essas economias experimentaram no advento do capitalismo (razões de fechamento sobre si próprias, essencialmente); segundo, é bom recordarmos essa evidência do desenvolvimento passado das relações de mercado para compreendermos o acordar de sopetão que economias como a chinesa experimentaram em tempos mais recentes. Afinal eram gigantes adormecidos em termos de desenvolvimento e extensão do mercado.

Ao contrário do que Marx sempre admitiu, o desenvolvimento da economia mundial com alargamento dos mercados não foi concretizado com a simples extensão das relações de produção capitalistas que foram geradas a partir da génese do capitalismo. A economia mundial alargou-se com uma extrema diversidade de modelos. É natural que por isso que, hoje, com o ressurgimento chinês face a esse longo sono do passado, se questione e comparem os modelos de desenvolvimento capitalista a ocidente e a oriente, embora pouca gente questione que o centro dinâmico do mundo se está a passar para oriente.

É em parte esse debate que Milanovic está a revisitar em torno de um novo livro que está a preparar (com saída esperada em 2019) e que terá por título esperado “Capitalism, alone” (link aqui). Nessa preparação, Milanovic regista a relevância de uma obra de um daqueles autores de cabeceira de outros tempos que mencionei anteriormente, Giovanni Arrighi: Adam Smith in Beijing – Lineages of the Twenty-First Century, Verso, Londres e Nova Iorque, 2007, que permaneceia adormecido na estante aqui ao lado, já colocado atrás de uma nova frente de livros. Recordo-me que ensinava os contributos de Arrighi para explicar a deterioração dos termos de troca dos produtos exportados pelos países mais pobres e subdesenvolvidos com um misto de religiosidade e de abertura de espirito. “L´échange Inégale” (A Troca Desigual) era uma obra fascinante e recordo-me que era das matérias com maior recetividade e atenção por parte dos alunos. Pois a obra de Arrighi recuperada por Milanovic compara os modelos de crescimento a ocidente e a oriente, estudando o modelo chinês como o mais representativo. Arrighi, por sua vez, retoma as diferenças que ele considera existirem entre um processo de desenvolvimento de uma economia de mercado e o desenvolvimento capitalista propriamente dito. Tendemos a confundir os dois conceitos porque se perdeu a tradição de uma ciência económica com história em parceria. Mas o que é verdadeiramente curioso é que a China se arrisca a ser o laboratório mais acabado do modelo de desenvolvimento preconizada por Adam Smith. Vale a pena citar umas linhas do próprio Arrighi:

“(…) a essência desta dinâmica é um processo de progresso económico puxado por ganhos de produtividade abrindo caminho a uma divisão do trabalho em alargamento e em aprofundamento só limitada pela extensão do mercado. À medida que o progresso económico aumenta os rendimentos e a procura efetiva, a extensão do mercado aumenta, criando por sua vez novas fases de divisão do trabalho e de progresso económico. Com o tempo, todavia, este círculo vicioso enfrenta os limites impostos à extensão do mercado pela escala espacial e institucional do processo. Quando esses limites são atingidos, o processo entra numa armadilha de equilíbrio de nível elevado. Acontece que se a Europa e a China estivessem ambas a mesma dinâmica Smithiana, o verdadeiro quebra-cabeças não consiste em saber porque é que a China foi apanhada numa armadilha de equilíbrio de nível elevado, mas antes porque é que a Europa escapou a essa armadilha através da Revolução Industrial”. (pag.25).

Fascinante, não? E também admito que muito boa gente achará que esta interpretação do Smith da divisão do trabalho potenciada ou bloqueada pela extensão do mercado parece chinês quando confrontado com a vulgata da mão invisível. Mas isso meus caros é a abertura e abrangência da formação de base que o explicam.

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