quinta-feira, 29 de novembro de 2018

O FESTIM DO ORÇAMENTO



(Se a votação na generalidade do Orçamento permite alguma legibilidade do posicionamento das forças políticas com assento parlamentar relativamente à situação atual do país e à realidade do governo com apoio à esquerda, já a votação na especialidade tem que se lhe diga em termos de legibilidade. O cenário de festim orçamental coloca-se mas, vá lá saber-se porquê e ponderadas as exceções de derivas, o resultado acaba por ter alguma coerência num cenário em que quem governa não tem a maioria.)

Já por repetidas vezes sublinhei neste espaço que me parece que a projeção político-mediática da discussão do Orçamento Geral do Estado é desproporcionada. Mais ainda, as discussões anuais carecem de alguma coerência plurianual, que pelo menos para alguns domínios da atividade governamental representa em si mesmo um significativo empobrecimento da discussão. É um facto que da aprovação ou reprovação do orçamento anual pode resultar a estabilidade ou a instabilidade governativa e consequentemente a possibilidade de interrupção da legislatura. Mas temos de convir que o Orçamento se mete por vezes por caminhos ínvios, entrando em domínios que me parecem ser uma clara interferência na esfera da autonomia governativa (não está em causa, como é óbvio, a accountability desta última.

Na discussão deste ano, a controvérsia em torno das cativações veio trazer alguma pimenta de clarificação em relação a algumas matérias. O Ministro Centeno, que tem revelado mais habilidade política do que poderia ser-lhe atribuída, veio esclarecer que os valores orçamentados para as despesas e receitas eram essencialmente estimativas, acontecendo que no caso das despesas elas devem ser também entendidas como tetos que não podem ser ultrapassados, mas que nada impede que possam ficar aquém dessas estimativas. E não deixou de ser curioso que forças políticas (PSD e CDS) que costumam ser tão sensíveis ao despesismo, criticando-o, vieram a terreiro condenar o truque de controlo orçamental a que Centeno recorre com argumentos que parecem de adeptos furiosos por mais despesa. Sendo conhecido que grande parte da margem de manobra orçamental depende do comportamento da atividade económica, e esta por mais arrojado que seja o governo, tem limites para ser influenciada a partir da atividade governativa, o truque de Centeno é uma tentativa de manter algum controlo sobre a (in) capacidade de cumprir as metas orçamentais, medidas em termos de peso no PIB do país. Penso que a estratégia das cativações é menos viciada do que a desorçamentação ou a orçamentação oculta. Essa sim parece-me mais lesiva das relações que têm de ser legíveis entre necessidades (excedentes) de financiamento determinadas pelas opções do orçamento e a evolução absoluta e em termos de peso no PIB da dívida pública. Outra coisa será concluir que esse controlo “em última instância” das estimativas orçamentais se concretiza por via exclusiva da compressão do investimento público, situando-o em níveis inferiores ao programado. O número de anos de sub-investimento público acumulado carece de recuperação e sacrificar o ritmo dessa recuperação a meras táticas de controlo orçamental por cativação não parece constituir uma boa prática, partindo do princípio de que as necessidades de investimento estão competentemente identificadas.

O debate na especialidade e a votação das propostas de alterações orçamentais a introduzir face à proposta do Governo é algo que tem uma síntese de grande complexidade, pois assume vários cambiantes: (i) é muitas vezes um festim orçamental com cada um a querer deixar a sua marca de zeladores por algum grupo de interesses na satisfação de determinadas necessidades; (ii) é também algumas vezes uma espécie de tiro ao boneco em que este é o Governo, sendo curioso que esse desporto não é praticado apenas pela oposição PSD e CDS mas também pelos apoiantes da solução governativa, que recuperam fôlego em matérias que não fizeram parte do acordo político (com a novidade de neste caso também a bancada do PS ter praticado esse desporto com a redução do IVA para as touradas); (iii) representa também a possibilidade sobretudo à esquerda do PS de recuperar imagem e coerência com os seus valores e públicos de suporte, mostrando a quem vota que sim senhor apoiam o governo mas não abdicam da sua matriz identitária.

Não sei se pela lei dos grandes números, com as compensações num tão elevado número de propostas e adendas a ditar esse resultado, se por outro motivo qualquer de tendência para a homeostase, o que acaba por resultar de tal festim acaba por ser, regra geral, algo que não contém muitos disparates. É verdade que contrariando o Governo, mas isso, meus amigos, quem governa sem maioria absoluta e com este tipo de apoio parlamentar tem de estar preparado para algumas contrariedades. Convenhamos que introduzir na discussão do orçamento novas vacinas no programa nacional de vacinação não lembraria ao bom diabo (ao mau diabo não estou certo). É verdade também que aprovar algumas normas com a pesada carga de favorecer o progresso civilizacional também aparece algo em desconformidade com as funções de um OGE. Mas por linhas tortas, que talvez sejam direitas segundo outros valores, a verdade é que teimosias imprevidentes acabam por ser chumbadas, como por exemplo, a taxa de proteção civil ou a taxa Robles. Bem pode a Liga de Pedro Pereira atirar-se ao ar pelo facto do futebol não ter sido incluído na redução do IVA aprovada. Mas se a Liga olhasse para o estado atual do futebol em Portugal e fizesse um bom exame do que pode passar-se em alguns estádios talvez moderasse o seu praguejar.

Por isso, apesar de alguns arrufos ou tentações de ser poder para além do legislativo, de alguma cultura de desculpabilização, como por exemplo esta novidade do nosso letrado Barreiras Duarte do PSD votar sem lá estar, a verdade é que se trata de um conjunto de “good fellows” (como é que se diz isto para incorporar o género?), merecendo compreensão. E lá vai chegar ao fim a solução que muitos julgavam inviável com a qual Costa encontrou a interlocução e o apoio que necessitava.

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