(Dados recentes com origem nas Nações Unidas confirmam a
tese que repetidas vezes já enunciei neste espaço de reflexão. O Reino Unido é
o exemplo mais acabado de estupidez ideológica, pura e simples, assumida pela
afeição conservadora às políticas de austeridade. Em comparação com esta tragédia, o descalabro do
Brexit é uma brincadeira de crianças mimadas educadas nos melhores colégios de
elite.)
Por repetidas vezes, enunciei aqui o que me parecia ser, indiscutivelmente,
o exemplo mais acabado de estupidez ideológica no uso da austeridade como
matriz de política económica. O Reino Unido é uma economia de grande dimensão,
logo sem problemas relevantes de acesso a financiamento internacional (veremos
como se comporta pós Brexit nessa matéria). Para além disso, é uma economia com
autonomia monetária e banco central independente das decisões do Banco Central
Europeu. Para além de tudo isso, viveu-se no pós-crise de 2007-2008 um longo período
de”zero lower bound” com taxas de
juro nulas ou negativas. Vários estudos realizados pelo Banco Central de
Inglaterra mostraram resultados, aliás amplamente citados na literatura
macroeconómica, que demonstraram a existência de taxas de juro naturais de equilíbrio
bastante baixas e a probabilidade desse cenário se manter durante um período prolongado
de tempo.
Pois neste contexto, o governo de Cameron-Osborne, primeiro e depois o de
Theresa May teimaram em manter políticas de desnecessário equilíbrio orçamental,
penalizando seriamente as políticas públicas com maior impacto nas condições de
vida dos cidadãos, particularmente dos mais desfavorecidos. Conhecem-se os exemplos
trágicos da política de habitação no Reino Unido. Pessoas em idade avançada e
de parcos recursos foram obrigados a procurar casas para situações de
desfavorecimento a distâncias extremas das suas atuais residências, simplesmente
porque desumanamente a política pública de habitação cedeu a posição ao mercado
mais impiedoso, lavando daí as mãos. Conhece-se também a degradação do sistema
público de saúde, com obviamente os mesmos a serem penalizados. Bibliotecas públicas
e centros de juventude fecharam em massa. Espaços e edifícios públicos foram
vendidos ao desbarato em mercado, reduzindo substancialmente o capital social público
em termos de infraestruturas.
No contexto macroeconómico atrás identificado e com carências óbvias em
termos de necessidades de melhores condições de vida para os mais desfavorecidos,
a opção de política orçamental dos governos de Cameron e May é o produto de uma
política de casta e de classe que despreza os mais pobres em função de uma
superioridade dinástica e de família.
Esta semana, foi publicado em Londres o relatório de Philip Alston, relator
especial das Nações Unidas sobre os direitos humanos e pobreza extrema no
mundo (link aqui). A situação descrita em termos de incidência da pobreza extrema no Reino
Unido é uma vergonha, ou deveria ser, para a quinta potência mundial e para um
dos maiores centros financeiros do mundo:
“14
milhões de pessoas, um quinto da população, vivem em situação de pobreza. Deste
grupo quatro milhões vivem em mais de 50% abaixo do limiar da pobreza absoluta
e 1,5 milhões podem considerar-se destituídos e sem qualquer possibilidade de satisfazer
necessidades essenciais. O amplamente reputado Institute of Fiscal Studies prevê
um crescimento de 7% na pobreza infantil entre 2015 e 2022 e várias fontes projetam
a taxa de pobreza infantil para valores em torno dos 40%. Uma em cada duas crianças
ser pobre no século XXI na Grã-Bretanha não constituirá apenas uma desgraça, mas
uma calamidade social e um desastre económico, tudo combinado numa só coisa”.
Todos estes resultados não constituem surpresa, dado o número de várias instituições
de quadrantes diversos que o anunciaram e preveniram, perante um Governo em puro
estado de negação. Estado de negação que alimenta até à exaustão uma inflexibilidade
ideológica, um desprezo profundo pelos mais desfavorecidos e produto de um espírito
de casta, de classe, desprezável e desprezível, que levou as políticas de austeridade
para além dos limites do suportável e admissível. Na Alemanha, poderemos falar
de condições estruturais de população obcecada pelo moralismo da poupança. No
Reino Unido, é puro espírito de casta. O relatório de Alston fala de engenharia
social (veja-se o artigo de , pois é disso que se trata e não de economia. Palavras cruas.
Não esqueçamos que este Governo em estado de negação foi o princípio inspirador
de Passos Coelho na sua bravata pela privatização da economia portuguesa, muito
para além dos ditames da Troika. Portas e seus seguidores também se reviam no conservadorismo
inglês. Agora que mentes iluminadas e saudosas de tempos passados próximos pensam
no regresso de Passos, convém recordar a estupidez ideológica que foi veiculada
pelos governos de Cameron/Osborne (uma dupla indissociável) e agora de Theresa
May.
Convém não esquecer estas coisas. O relator especial das Nações Unidas para
a pobreza extrema e direitos humanos não parece ser um perigoso esquerdista.
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