segunda-feira, 19 de novembro de 2018

TRÁGICA E ESTÚPIDA AUSTERIDADE



(Dados recentes com origem nas Nações Unidas confirmam a tese que repetidas vezes já enunciei neste espaço de reflexão. O Reino Unido é o exemplo mais acabado de estupidez ideológica, pura e simples, assumida pela afeição conservadora às políticas de austeridade. Em comparação com esta tragédia, o descalabro do Brexit é uma brincadeira de crianças mimadas educadas nos melhores colégios de elite.)

Por repetidas vezes, enunciei aqui o que me parecia ser, indiscutivelmente, o exemplo mais acabado de estupidez ideológica no uso da austeridade como matriz de política económica. O Reino Unido é uma economia de grande dimensão, logo sem problemas relevantes de acesso a financiamento internacional (veremos como se comporta pós Brexit nessa matéria). Para além disso, é uma economia com autonomia monetária e banco central independente das decisões do Banco Central Europeu. Para além de tudo isso, viveu-se no pós-crise de 2007-2008 um longo período de”zero lower bound” com taxas de juro nulas ou negativas. Vários estudos realizados pelo Banco Central de Inglaterra mostraram resultados, aliás amplamente citados na literatura macroeconómica, que demonstraram a existência de taxas de juro naturais de equilíbrio bastante baixas e a probabilidade desse cenário se manter durante um período prolongado de tempo.

Pois neste contexto, o governo de Cameron-Osborne, primeiro e depois o de Theresa May teimaram em manter políticas de desnecessário equilíbrio orçamental, penalizando seriamente as políticas públicas com maior impacto nas condições de vida dos cidadãos, particularmente dos mais desfavorecidos. Conhecem-se os exemplos trágicos da política de habitação no Reino Unido. Pessoas em idade avançada e de parcos recursos foram obrigados a procurar casas para situações de desfavorecimento a distâncias extremas das suas atuais residências, simplesmente porque desumanamente a política pública de habitação cedeu a posição ao mercado mais impiedoso, lavando daí as mãos. Conhece-se também a degradação do sistema público de saúde, com obviamente os mesmos a serem penalizados. Bibliotecas públicas e centros de juventude fecharam em massa. Espaços e edifícios públicos foram vendidos ao desbarato em mercado, reduzindo substancialmente o capital social público em termos de infraestruturas.

No contexto macroeconómico atrás identificado e com carências óbvias em termos de necessidades de melhores condições de vida para os mais desfavorecidos, a opção de política orçamental dos governos de Cameron e May é o produto de uma política de casta e de classe que despreza os mais pobres em função de uma superioridade dinástica e de família.

Esta semana, foi publicado em Londres o relatório de Philip Alston, relator especial das Nações Unidas sobre os direitos humanos e pobreza extrema no mundo (link aqui). A situação descrita em termos de incidência da pobreza extrema no Reino Unido é uma vergonha, ou deveria ser, para a quinta potência mundial e para um dos maiores centros financeiros do mundo:

14 milhões de pessoas, um quinto da população, vivem em situação de pobreza. Deste grupo quatro milhões vivem em mais de 50% abaixo do limiar da pobreza absoluta e 1,5 milhões podem considerar-se destituídos e sem qualquer possibilidade de satisfazer necessidades essenciais. O amplamente reputado Institute of Fiscal Studies prevê um crescimento de 7% na pobreza infantil entre 2015 e 2022 e várias fontes projetam a taxa de pobreza infantil para valores em torno dos 40%. Uma em cada duas crianças ser pobre no século XXI na Grã-Bretanha não constituirá apenas uma desgraça, mas uma calamidade social e um desastre económico, tudo combinado numa só coisa”.

Todos estes resultados não constituem surpresa, dado o número de várias instituições de quadrantes diversos que o anunciaram e preveniram, perante um Governo em puro estado de negação. Estado de negação que alimenta até à exaustão uma inflexibilidade ideológica, um desprezo profundo pelos mais desfavorecidos e produto de um espírito de casta, de classe, desprezável e desprezível, que levou as políticas de austeridade para além dos limites do suportável e admissível. Na Alemanha, poderemos falar de condições estruturais de população obcecada pelo moralismo da poupança. No Reino Unido, é puro espírito de casta. O relatório de Alston fala de engenharia social (veja-se o artigo de , pois é disso que se trata e não de economia. Palavras cruas.

Não esqueçamos que este Governo em estado de negação foi o princípio inspirador de Passos Coelho na sua bravata pela privatização da economia portuguesa, muito para além dos ditames da Troika. Portas e seus seguidores também se reviam no conservadorismo inglês. Agora que mentes iluminadas e saudosas de tempos passados próximos pensam no regresso de Passos, convém recordar a estupidez ideológica que foi veiculada pelos governos de Cameron/Osborne (uma dupla indissociável) e agora de Theresa May.

Convém não esquecer estas coisas. O relator especial das Nações Unidas para a pobreza extrema e direitos humanos não parece ser um perigoso esquerdista.

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