sábado, 17 de novembro de 2018

PODE A DEMOCRACIA SER TÓXICA?



(Esta é a pergunta provocatória que Xosé Luís Barreiro Rivas coloca na sua crónica mais recente na Voz de Galicia (link aqui). Um cronista incómodo, irreverente, mas que coloca questões às quais dificilmente se pode virar as costas e ignorá-las.)

Nos últimos tempos, as múltiplas liberdades que a democracia nos oferece têm sido acionadas em direções perigosas que seguramente pervertem o futuro dessa mesma democracia. A frequência com que tais perversidades têm emergido em sociedades governadas segundo regras democráticas tem-se materializado em inúmeras eleições cujos resultados trazem populistas, demagogos, aprendizes de autocratas, paradoxalmente antidemocratas para o exercício do poder. Instrumentalizando as regras democráticas mais simples, esta gente procura rapidamente, mostra-nos a experiência, arruinar as bases de funcionamento do sistema democrático, vergando e submetendo a justiça aos interesses de alguns, dinamitando a imprensa livre e democrática, promovendo acertos constitucionais que visam validar mecanismos enviesadores das normas democráticas mais elementares.

Tal como Barreiro Rivas nos alerta, a reação mais frequente consiste obviamente em não culpar a própria democracia, mas antes culpar a deficiente gestão política dos acontecimentos ou até a deficiente regulação e vigilância dos preceitos constitucionais. Mas convém não esquecer que os votantes eleitores não podem ser sistematicamente desresponsabilizados por algumas das suas decisões eleitorais. Os autoritarismos, populismos e outras perversidades do jogo democrático têm chegado ao poder ou dele ficarem muito próximos com poder de influência nos Parlamentos, levados ao colo, por vezes embevecidos, por massas significativas de eleitores. Podemos dizer que na esmagadora maioria das situações estaremos a falar do peso eleitoral de gente com baixas qualificações, desinformada ou simplesmente alienada de pensar pela sua própria cabeça, ferida nos seus interesses e condições por fatores que não controla e que lhe são impostos por forças de grande expressão. Mas a verdade é que são eleitores como outros quaisquer, cavando muitas vezes a própria sepultura.

Como é que se combate este tipo de perversidades do jogo democrático? Seguramente no plano político, indo à luta e combatendo a desinformação, procurando sempre que possível intervir nas causas que determinam esses comportamentos eleitorais perversos. Mas esse combate tem limites. A intervenção sobre muitas das causas associadas tem uma maturação de efeitos que transcendem o horizonte de muitos dos atos eleitorais em que tais comportamentos se manifestam. E, por outro lado, do lado de lá, temos políticos que não hesitam em recorrer à camuflagem democrática para simplesmente tirar partido das múltiplas liberdades que a democracia nos proporciona.

Compreende-se que a reação de Barreiro Rivas tem em conta especialmente a situação política espanhola, onde o comportamento eleitoral dos espanhóis não consegue deslindar o lio que sucessivas eleições provocaram, materializado por agora no infindável filme da aprovação do Orçamento para 2019 que não consegue concretizar-se por sucessivas alterações do guião. Posso discordar em alguns aspetos da visão de Barreiro Rivas sobre a situação política espanhola. Mas o seu alerta sobre as toxicidades possíveis da democracia merece ser tido em devida conta. Se houvera outras razões uma pelo menos me convence: a sagacidade dos que não hesitam em utilizar as liberdades do jogo democrático para posteriormente o colocar em cheque vai-se refinando e há artistas cada vez melhor preparados. A grande virtude da democracia é que só no seu âmbito se podem combater as tais toxicidades.

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