(Esta é a pergunta provocatória que Xosé Luís Barreiro Rivas
coloca na sua crónica mais recente na Voz de Galicia (link aqui). Um cronista incómodo, irreverente, mas que coloca
questões às quais dificilmente se pode virar as costas e ignorá-las.)
Nos últimos tempos, as múltiplas liberdades que a democracia nos oferece têm
sido acionadas em direções perigosas que seguramente pervertem o futuro dessa
mesma democracia. A frequência com que tais perversidades têm emergido em sociedades
governadas segundo regras democráticas tem-se materializado em inúmeras eleições
cujos resultados trazem populistas, demagogos, aprendizes de autocratas, paradoxalmente
antidemocratas para o exercício do poder. Instrumentalizando as regras democráticas
mais simples, esta gente procura rapidamente, mostra-nos a experiência, arruinar
as bases de funcionamento do sistema democrático, vergando e submetendo a
justiça aos interesses de alguns, dinamitando a imprensa livre e democrática,
promovendo acertos constitucionais que visam validar mecanismos enviesadores
das normas democráticas mais elementares.
Tal como Barreiro Rivas nos alerta, a reação mais frequente consiste
obviamente em não culpar a própria democracia, mas antes culpar a deficiente
gestão política dos acontecimentos ou até a deficiente regulação e vigilância
dos preceitos constitucionais. Mas convém não esquecer que os votantes
eleitores não podem ser sistematicamente desresponsabilizados por algumas das
suas decisões eleitorais. Os autoritarismos, populismos e outras perversidades
do jogo democrático têm chegado ao poder ou dele ficarem muito próximos com
poder de influência nos Parlamentos, levados ao colo, por vezes embevecidos, por
massas significativas de eleitores. Podemos dizer que na esmagadora maioria das
situações estaremos a falar do peso eleitoral de gente com baixas qualificações,
desinformada ou simplesmente alienada de pensar pela sua própria cabeça, ferida
nos seus interesses e condições por fatores que não controla e que lhe são
impostos por forças de grande expressão. Mas a verdade é que são eleitores como
outros quaisquer, cavando muitas vezes a própria sepultura.
Como é que se combate este tipo de perversidades do jogo democrático? Seguramente
no plano político, indo à luta e combatendo a desinformação, procurando sempre
que possível intervir nas causas que determinam esses comportamentos eleitorais
perversos. Mas esse combate tem limites. A intervenção sobre muitas das causas
associadas tem uma maturação de efeitos que transcendem o horizonte de muitos
dos atos eleitorais em que tais comportamentos se manifestam. E, por outro lado,
do lado de lá, temos políticos que não hesitam em recorrer à camuflagem democrática
para simplesmente tirar partido das múltiplas liberdades que a democracia nos
proporciona.
Compreende-se que a reação de Barreiro Rivas tem em conta especialmente a situação
política espanhola, onde o comportamento eleitoral dos espanhóis não consegue
deslindar o lio que sucessivas eleições provocaram, materializado por agora no
infindável filme da aprovação do Orçamento para 2019 que não consegue concretizar-se
por sucessivas alterações do guião. Posso discordar em alguns aspetos da visão
de Barreiro Rivas sobre a situação política espanhola. Mas o seu alerta sobre as
toxicidades possíveis da democracia merece ser tido em devida conta. Se houvera
outras razões uma pelo menos me convence: a sagacidade dos que não hesitam em utilizar
as liberdades do jogo democrático para posteriormente o colocar em cheque
vai-se refinando e há artistas cada vez melhor preparados. A grande virtude da democracia
é que só no seu âmbito se podem combater as tais toxicidades.
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