(Reflexões algo confusas sobre o que me parece ser uma grande
evidência dos tempos que viveremos no futuro próximo. E se a arrogância do poço
de estupidez que Trump representa nos pode conduzir, compreensivelmente, a uma
visão pouco abrangente do fenómeno, a verdade é que a grande migração que
percorreu cerca de 4.000 quilómetros também tem de ser olhada à luz do que na
origem a determinou. Por muito que custe a um certo esquerdismo latino-americano.)
Se Roberto Bolaño fosse vivo certamente que nos brindaria com o seu talento
caótico-romanesco para construir algumas narrativas sobre o ambiente de caos,
violência, desespero, desorientação e infelicidade encrustada em momentos de
felicidade que se vivem hoje em Tijuana, a última grande cidade do México que
separa os migrantes de uma entrada cada vez mais problemática nos Estados
Unidos. O ambiente em Tijuana é seguramente mais tenebroso do que os migrantes viveram
na sua passagem pela monstruosa cidade do México. Pelos relatos que nos chegam,
as lideranças políticas locais e, porque não dizê-lo, uma grande parte das
populações aí residentes, vivem aterrorizados pela possibilidade daquela mole
humana gigantesca permanecer por tempos intermináveis por aquelas paragens. Grande
parte dos migrantes encontra abrigo nos tragicamente conhecidos estádios
latino-americanos de futebol, utilizados muitas vezes para o exercício de
repressões concentradas. Neste caso, até ao momento, no estádio principal de Tijuana
a massa principal desses migrantes vai encontrando algum apoio, mas nada nos
garante que à medida que cheguem novos conjuntos ainda envolvidos na longa
marcha a situação se descontrole e acabe por gerar a repressão.
A dimensão da mole humana e a distância a que o êxodo se projetou impressionam
qualquer pessoa dotado de um mínimo de sensibilidade, tanto mais que o que movimenta
tais pessoas para uma marcha tão épica são objetivos claros de fuga á miséria,
ao desespero e à degradação da esperança. E se é verdade que não podemos deixar
de nos horrorizar face ao desplante de Trump que, face à dimensão da ameaça,
aproveita para pedir ao Congresso fundos para construir o tal muro, do alto da
sua arrogância de quem avisou para a sua necessidade, não podemos ignorar o que
na origem determinou esta grande migração dos nossos tempos. Uma migração é
sempre uma ponte entre fatores na origem que a determinam e enquadram e elementos
de aspiração e de cálculo que associamos ao destino. Essa ponte é construída na
base de perceções, não de leituras objetivas do que os migrantes vão efetivamente
encontrar, se os deixarem viver esse sonho. Mas por muito que custe a um certo
esquerdismo latino-americano a grande migração é também o resultado da falência
de Estados e de Países. O mesmo se diga em relação às migrações forçadas com
origem na Venezuela. O problema é sempre o mesmo, falência de modelos, encurralados
entre a corrupção, o abuso do poder, as esperanças infantis de algumas revoluções
populares, a rápida degradação das instituições e a selvajaria transformada em
arremedos de mercados de trabalho, senão com modernas e estranhas formas de
escravidão.
Claro que não estou a colocar-me naquela tão conhecida posição cínica de nada
se fazer enquanto não se atalha o problema na origem. Não. Temos um problema
humanitário e é preciso resolvê-lo com humanidade, seja em Tijuana, seja
noutros locais de acolhimento, dos quais os EUA não podem esconder-se sob a metáfora
do muro. Mas não podemos deixar de fora a falência na origem. António Guterres
e a ONU enfrentam aqui um novo desafio para mostrarem ao mundo que a sua existência
se justifica.
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