quarta-feira, 28 de novembro de 2018

A GRANDE MARCHA/MIGRAÇÃO



(Reflexões algo confusas sobre o que me parece ser uma grande evidência dos tempos que viveremos no futuro próximo. E se a arrogância do poço de estupidez que Trump representa nos pode conduzir, compreensivelmente, a uma visão pouco abrangente do fenómeno, a verdade é que a grande migração que percorreu cerca de 4.000 quilómetros também tem de ser olhada à luz do que na origem a determinou. Por muito que custe a um certo esquerdismo latino-americano.)

Se Roberto Bolaño fosse vivo certamente que nos brindaria com o seu talento caótico-romanesco para construir algumas narrativas sobre o ambiente de caos, violência, desespero, desorientação e infelicidade encrustada em momentos de felicidade que se vivem hoje em Tijuana, a última grande cidade do México que separa os migrantes de uma entrada cada vez mais problemática nos Estados Unidos. O ambiente em Tijuana é seguramente mais tenebroso do que os migrantes viveram na sua passagem pela monstruosa cidade do México. Pelos relatos que nos chegam, as lideranças políticas locais e, porque não dizê-lo, uma grande parte das populações aí residentes, vivem aterrorizados pela possibilidade daquela mole humana gigantesca permanecer por tempos intermináveis por aquelas paragens. Grande parte dos migrantes encontra abrigo nos tragicamente conhecidos estádios latino-americanos de futebol, utilizados muitas vezes para o exercício de repressões concentradas. Neste caso, até ao momento, no estádio principal de Tijuana a massa principal desses migrantes vai encontrando algum apoio, mas nada nos garante que à medida que cheguem novos conjuntos ainda envolvidos na longa marcha a situação se descontrole e acabe por gerar a repressão.

A dimensão da mole humana e a distância a que o êxodo se projetou impressionam qualquer pessoa dotado de um mínimo de sensibilidade, tanto mais que o que movimenta tais pessoas para uma marcha tão épica são objetivos claros de fuga á miséria, ao desespero e à degradação da esperança. E se é verdade que não podemos deixar de nos horrorizar face ao desplante de Trump que, face à dimensão da ameaça, aproveita para pedir ao Congresso fundos para construir o tal muro, do alto da sua arrogância de quem avisou para a sua necessidade, não podemos ignorar o que na origem determinou esta grande migração dos nossos tempos. Uma migração é sempre uma ponte entre fatores na origem que a determinam e enquadram e elementos de aspiração e de cálculo que associamos ao destino. Essa ponte é construída na base de perceções, não de leituras objetivas do que os migrantes vão efetivamente encontrar, se os deixarem viver esse sonho. Mas por muito que custe a um certo esquerdismo latino-americano a grande migração é também o resultado da falência de Estados e de Países. O mesmo se diga em relação às migrações forçadas com origem na Venezuela. O problema é sempre o mesmo, falência de modelos, encurralados entre a corrupção, o abuso do poder, as esperanças infantis de algumas revoluções populares, a rápida degradação das instituições e a selvajaria transformada em arremedos de mercados de trabalho, senão com modernas e estranhas formas de escravidão.

Claro que não estou a colocar-me naquela tão conhecida posição cínica de nada se fazer enquanto não se atalha o problema na origem. Não. Temos um problema humanitário e é preciso resolvê-lo com humanidade, seja em Tijuana, seja noutros locais de acolhimento, dos quais os EUA não podem esconder-se sob a metáfora do muro. Mas não podemos deixar de fora a falência na origem. António Guterres e a ONU enfrentam aqui um novo desafio para mostrarem ao mundo que a sua existência se justifica.

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