quinta-feira, 8 de novembro de 2018

UMA GRANDE TOURADA



(Confesso que me vai faltando a paciência para lidar com esta doença nacional de transformar questões que afetam grupos relativamente residuais de portugueses em matérias de lesa pátria como se influenciassem o futuro de todos nós. Sem esquecer e escarnecer desse passo de mágica, acho que o governo se mete por meios sinuosos quando utiliza a política fiscal para situar a tauromaquia no seu real reduto.)

Tenho para mim que a política fiscal é um assunto demasiado sério para ser contaminado com questões de liberdade e de escolhas civilizacionais. Tanto quanto possível o alcance da política fiscal deve ser claro, transparente, legível, definir grandes linhas de definição de impostos, evitando o discricionário de pequenas escolhas realizadas sabe-se lá com que fins e critérios. Por isso, nunca fui um grande adepto de incentivos fiscais e da sua discricionariedade. O principal motivo para essa minha posição é que a partir de um certo momento é praticamente impossível ter uma perspetiva legível das opções tomadas. Costumo invocar a analogia com a discricionariedade de uma pauta aduaneira, com a imposição de direitos aduaneiros a produtos específicos e particulares e o rol de isenções. Não é este o tipo de intervencionismo económico de que me reivindico. Considero que este é um mau intervencionismo económico e estou cheio dos exemplos de oportunismo e amiguismo que emergem na definição de tais decisões discricionárias.

Tudo se torna pior quando, para além desse mau intervencionismo económico, o discricionário fiscal é utilizado para pretensas batalhas civilizacionais. Como há falta de questões mais importantes para debater (mais propriamente falta de vontade e de coragem para o fazer), o definhado ambiente de debate de ideias em Portugal reacendeu-se com a questão das touradas e da decisão governamental de não lhe atribuir a redução de IVA que assumiu para outras formas de espetáculo e de cultura. Cristas e Meireles, que devem gostar de se apresentar como amazonas azougadas a passear o seu charme pela Golegã e outros sítios do Ribatejo (é algo muito comum às moçoilas da capital que precisam de um mergulho no rural castiço para alimentar o seu conservadorismo intrínseco) vieram imediatamente a terreiro invocar que o governo não pode monopolizar o direito do gosto. Alegre, do alto do seu tradicionalismo que ele considera progressista, veio mesmo endereçar uma carta aberta ao primeiro-Ministro alertando-o para os perigos do politicamente correto e do cerceamento da liberdade de gostar de touradas e da caça. A nova Ministra, com queda para os temas fraturantes, respondeu que não se tratava de uma questão de gosto, mas de progresso ou de recuo civilizacional.

Entendamo-nos. Não é possível meter no mesmo saco a caça e as touradas. A primeira tem uma mas vasta incidência territorial e abrange gente de norte a sul. É já uma atividade fortemente regulada e por isso não entendo muito bem o que é que o PAN quer fazer. Quanto às touradas, a minha grande referência é a literatura portuguesa do marialvismo, com o saudoso e contundente José Cardoso Pires à cabeça a dominar a minha intuição sobre o assunto e com alguns fados obras-primas desse mesmo marialvismo (recordo-me de um do Carlos Ramos com a sela e a mulher como os grandes prazeres do dito). Essas referências mostram-nos que se trata de uma matéria de grande acantonamento territorial, algo inserido na área de influência de uma viagem real em carruagem, a descoberto ou mais ou menos clandestina, a partir do epicentro da corte. Por muito que custe aos fanáticos do tema nunca a tauromaquia em Portugal teve a dimensão da que revestiu em Espanha e não é apenas uma questão da dimensão comparativa dos países, é também de incidência territorial do próprio fenómeno. Assim, a tauromaquia sempre foi um produto colateral do centralismo nacional e lisboeta, sendo um pouco patéticas as tentativas de a projetar para fora do Ribatejo. Se quisermos ser rigorosos haveria a necessidade de diferenciar a tauromaquia a cavalo, onde admito que podemos estar a falar de algo um pouco mais abrangente.

Sem qualquer menosprezo para os protagonistas e dinamizadores de tais práticas, a tauromaquia está para mim como as lutas de bois ou outra qualquer prática local envolvendo pesadas tradições. São atividades que terão a sua evolução normal de transição à medida que o tempo se vai abatendo sobre as mesmas, com graus diferenciados de reprodução e rejuvenescimento, umas resistindo à usura do tempo ajudadas por alguma preocupação de preservação de património cultural, outras finar-se-ão, como tantas outras na voragem do tempo e da transformação das sociedades.

Ora, pretender utilizar a política fiscal para intervir nesta transição civilizacional não lembraria ao diabo mas lembrou à nova Ministra da Cultura. Longe vão os tempos, felizmente, em que o serviço público de televisão nos obrigava a encarar uma tradição regional como se de uma prioridade nacional se tratasse e nos pregava com a chumbada de uma transmissão de várias horas. Deixemos a evolução da sociedade portuguesa em função do desenvolvimento que lhe possamos assegurar colocar estas pretensas tradições no lugar que as novas gerações achem que vale a pena dedicar-lhe. Não compliquemos a política fiscal que já de si exigiria uma maior legibilidade e, isso sim, uma eficaz defesa dos cidadãos relativamente ao autoritarismo da máquina fiscal.

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