(Confesso que me vai faltando a paciência para lidar com
esta doença nacional de transformar questões que afetam grupos relativamente
residuais de portugueses em matérias de lesa pátria como se influenciassem o
futuro de todos nós. Sem esquecer e escarnecer desse passo de mágica, acho que o governo se mete
por meios sinuosos quando utiliza a política fiscal para situar a tauromaquia
no seu real reduto.)
Tenho para mim que a política fiscal é um assunto demasiado sério para ser contaminado
com questões de liberdade e de escolhas civilizacionais. Tanto quanto possível
o alcance da política fiscal deve ser claro, transparente, legível, definir
grandes linhas de definição de impostos, evitando o discricionário de pequenas
escolhas realizadas sabe-se lá com que fins e critérios. Por isso, nunca fui um
grande adepto de incentivos fiscais e da sua discricionariedade. O principal
motivo para essa minha posição é que a partir de um certo momento é
praticamente impossível ter uma perspetiva legível das opções tomadas. Costumo
invocar a analogia com a discricionariedade de uma pauta aduaneira, com a
imposição de direitos aduaneiros a produtos específicos e particulares e o rol
de isenções. Não é este o tipo de intervencionismo económico de que me
reivindico. Considero que este é um mau intervencionismo económico e estou
cheio dos exemplos de oportunismo e amiguismo que emergem na definição de tais
decisões discricionárias.
Tudo se torna pior quando, para além desse mau intervencionismo económico,
o discricionário fiscal é utilizado para pretensas batalhas civilizacionais.
Como há falta de questões mais importantes para debater (mais propriamente
falta de vontade e de coragem para o fazer), o definhado ambiente de debate de
ideias em Portugal reacendeu-se com a questão das touradas e da decisão
governamental de não lhe atribuir a redução de IVA que assumiu para outras
formas de espetáculo e de cultura. Cristas e Meireles, que devem gostar de se
apresentar como amazonas azougadas a passear o seu charme pela Golegã e outros
sítios do Ribatejo (é algo muito comum às moçoilas da capital que precisam de
um mergulho no rural castiço para alimentar o seu conservadorismo intrínseco)
vieram imediatamente a terreiro invocar que o governo não pode monopolizar o
direito do gosto. Alegre, do alto do seu tradicionalismo que ele considera progressista,
veio mesmo endereçar uma carta aberta ao primeiro-Ministro alertando-o para os
perigos do politicamente correto e do cerceamento da liberdade de gostar de
touradas e da caça. A nova Ministra, com queda para os temas fraturantes,
respondeu que não se tratava de uma questão de gosto, mas de progresso ou de
recuo civilizacional.
Entendamo-nos. Não é possível meter no mesmo saco a caça e as touradas. A
primeira tem uma mas vasta incidência territorial e abrange gente de norte a
sul. É já uma atividade fortemente regulada e por isso não entendo muito bem o
que é que o PAN quer fazer. Quanto às touradas, a minha grande referência é a
literatura portuguesa do marialvismo, com o saudoso e contundente José Cardoso
Pires à cabeça a dominar a minha intuição sobre o assunto e com alguns fados
obras-primas desse mesmo marialvismo (recordo-me de um do Carlos Ramos com a
sela e a mulher como os grandes prazeres do dito). Essas referências
mostram-nos que se trata de uma matéria de grande acantonamento territorial,
algo inserido na área de influência de uma viagem real em carruagem, a
descoberto ou mais ou menos clandestina, a partir do epicentro da corte. Por
muito que custe aos fanáticos do tema nunca a tauromaquia em Portugal teve a
dimensão da que revestiu em Espanha e não é apenas uma questão da dimensão
comparativa dos países, é também de incidência territorial do próprio fenómeno.
Assim, a tauromaquia sempre foi um produto colateral do centralismo nacional e
lisboeta, sendo um pouco patéticas as tentativas de a projetar para fora do
Ribatejo. Se quisermos ser rigorosos haveria a necessidade de diferenciar a
tauromaquia a cavalo, onde admito que podemos estar a falar de algo um pouco
mais abrangente.
Sem qualquer menosprezo para os protagonistas e dinamizadores de tais
práticas, a tauromaquia está para mim como as lutas de bois ou outra qualquer
prática local envolvendo pesadas tradições. São atividades que terão a sua
evolução normal de transição à medida que o tempo se vai abatendo sobre as
mesmas, com graus diferenciados de reprodução e rejuvenescimento, umas
resistindo à usura do tempo ajudadas por alguma preocupação de preservação de
património cultural, outras finar-se-ão, como tantas outras na voragem do tempo e da transformação das sociedades.
Ora, pretender utilizar a política fiscal para intervir nesta transição
civilizacional não lembraria ao diabo mas lembrou à nova Ministra da Cultura. Longe
vão os tempos, felizmente, em que o serviço público de televisão nos obrigava a
encarar uma tradição regional como se de uma prioridade nacional se tratasse e
nos pregava com a chumbada de uma transmissão de várias horas. Deixemos a
evolução da sociedade portuguesa em função do desenvolvimento que lhe possamos
assegurar colocar estas pretensas tradições no lugar que as novas gerações achem
que vale a pena dedicar-lhe. Não compliquemos a política fiscal que já de si exigiria
uma maior legibilidade e, isso sim, uma eficaz defesa dos cidadãos
relativamente ao autoritarismo da máquina fiscal.
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