(Vivemos em sistemas de atores em que a dimensão ética do comportamento
individual é uma espécie em desaparecimento, o que converge com a perceção de
que o sentimento da vergonha é cada vez algo de exótico e raro. Alinho com Peter Dorman no Econospeak quando
apela para que este tema seja considerado nas relevantes alterações que se vêm
observando na esfera pública.)
A dimensão ética e moral da economia e da política sempre foi um tema que
me interessou. Em tempos já idos, gastei algumas pestanas a mergulhar na Theory of Moral Sentiments de Adam Smith
(acho que nunca houve uma tradução portuguesa), ficando fascinado pelo confronto
entre o Smith da divisão do trabalho e da proeminência do mercado e o Smith da base
moral de uma economia. Recordo-me de ter, lá longe, apresentado uma comunicação
a uma das conferências do CISEP sobre economia portuguesa, em Lisboa,
dinamizadas pela Professora Manuela Silva, com o tema “A degenerescência da
base moral da economia portuguesa”, que há dias reli depois de um encontro
acidental com uma cópia entre arquivos praticamente ignorados lá em casa (que
antiguinho!). Acho que na altura a ignorância do tema na academia era manifesta
e a comunicação foi recebida embora com interesse como se tratasse de um
produto exótico.
Em estreita articulação com a intensificação dos fenómenos de captura do Estado
pelos interesses económicos mais poderosos e de aumento dos índices de corrupção,
económica e política, a dimensão ética e moral destes dois mundos, cada vez
mais entrelaçados, tem andado pelas ruas da amargura. Muito boa gente é veículo
de um discurso de desculpabilização destes processos, invocando precisamente o
posicionamento face ao mercado. Ou seja, se no mercado aparecem com êxito comportamento
que se borrifam para a ética e que representam a degenerescência clara da base
moral, então os mecanismos da concorrência encarregam-se de induzir novos
comportamentos com essas características. Claro que este argumento torna-se uma
falácia desculpabilizante se atendermos aos ensinamentos de Smith que não
ignorava a relevância dos sentimentos morais. É óbvio que podemos invocar que a
regulação está lá é para alguma coisa e pode atuar. Mas uma sociedade minada
pelo afundamento ético e pela degenerescência da base moral mais tarde ou mais
cedo tende a envenenar os próprios processos de regulação, como acontece hoje
por exemplo na sociedade americana.
O tema entretanto tem merecido alguns desenvolvimentos em matéria de
investigação, sobretudo no campo da ética empresarial. Neste domínio, avultam
contributos de gente claramente identificada com a OPUS DEI e também com a
formação pós graduada jesuíta. Muito sinceramente basta a primeira evidência
para me por a milhas de tais ilustres mentes e não é por usar avental, espero
que me entendam. Nos últimos tempos, o fenómeno tem penetrado também a ação política.
Basta recordar alguns conflitos de interesses de deputados e outros personagens
e a maneira como acabam por ser resolvidos para ter a evidência clara de que se
a economia e a política estão cada vez mais interligadas, isso parece também estender-se
à perda de referenciais éticos e morais no seu exercício.
No ECONOSPEAK, um blogue que por vezes visito, Peter Dorman (link aqui) abordava no
recente dia 11, a questão por um outro ângulo, o do desaparecimento da vergonha
como um elemento regulador destas matérias. A vergonha é uma categoria entendida
como praticamente a única alternativa que existe relativamente à coerção pura e
dura tendo em vista evitar a violação das normas de convivência em sociedade. A
vergonha é uma espécie de consequência da sanção de rejeição social do grupo
face à sem vergonha de um “artista” qualquer. Mas Dorman é pessimista quanto a
esta força reguladora:
“A fé em que a
vergonha seja uma força de aplicação universal e efetiva é uma indulgência
moderna, um produto do racionalismo e do otimismo num mundo Iluminado. Ela ignora
pelo menos duas verdades desconfortáveis. A primeira é a de que a resposta
vergonha não é igualmente forte em todas as pessoas. Algumas são influenciadas
pelo medo da vergonha e tendem por isso a acionar poucos juízos ou iniciativas
independentes. Outros são a maior parte das vezes impermeáveis a essa influência;
parecem alimentar-se da desaprovação que os rodeiam e só cedem à aplicação de
um poder de coerção. A segunda é que essa vergonha, tal como outros fatores
psicológicos, é mediada pelo modo como interpretamos o mundo – em termos
religiosos, ideológicos e de hábitos sociais. É por isso que padres e senhores
da guerra só sentem vergonha entre pares e não universalmente e que a noção de
vergonha universal é uma hipótese política de contextos históricos específicos”.
Ora aqui está uma nova maneira de olhar para a esfera pública e para a
maneira como os interesses privados aí se movimentam.
Nos tempos que correm, a nação que se anuncia como a mais avançada do mundo
(na minha aceção olharia mais para os escandinavos) é presidida por alguém que
não tem claramente qualquer sentimento de vergonha, ou seja com um efeito de
demonstração ao mais alto nível. O que não deixa de ser um ponto máximo de exacerbação.
Será que os americanos e as suas instituições ficarão indiferentes a este efeito de
demonstração, resistindo à contaminação?
Correção:
O meu amigo e sempre atento António Oliveira das Neves recorda-me a existência de uma tradução brasileira de The Theory of Moral Sentiments e até me indica o link para essa referência:
https://www.wook.pt/livro/teoria-dos-sentimentos-morais-adam-smith/55306. Bem haja.
(Atualizado a 15.11.2018 às 21.26)
Correção:
O meu amigo e sempre atento António Oliveira das Neves recorda-me a existência de uma tradução brasileira de The Theory of Moral Sentiments e até me indica o link para essa referência:
https://www.wook.pt/livro/teoria-dos-sentimentos-morais-adam-smith/55306. Bem haja.
(Atualizado a 15.11.2018 às 21.26)
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