quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

O LIVRO DO ANO



Estou de acordo com Gavyn Davies no Financial Times ao considerar a obra Capital in the Twenty-First Century de Thomas Piketty o livro do ano. Tendo Piketty escrito originalmente a obra em francês e sendo o seu posto de trabalho na velha Sorbonne, não tenho dúvidas em considerar o acontecimento um facto revolucionário nas condições de disseminação do pensamento económico. É verdade que há longo tempo Piketty vem mantendo colaboração regular com economistas anglo-saxónicos de grande notoriedade nos últimos tempos como Emmanuel Saez (também francês mas há longo tempo em Berkeley), Gabriel Zucman e Tony Atkinson, o que mostra que não é propriamente um outsider do mainstream anglo-saxónico. Mas ter a Sorbonne e um original francês nas bocas do mundo é uma grande obra, e isso explica a grande abertura e humildade de Piketty a todas as críticas, comentários, achegas e alfinetadas que o livro tem suscitado. Piketty já ganhou, porque suscitou todo um debate generalizado na academia e na imprensa económica (veja-se o espantoso número de vendas do Capital).
Mas há argumentos mais profundos para justificar a agitação de ideias (e como dela está carenciado o pensamento económico) que a obra provocou.
Este post escrito numa manhã distendida de Natal de que estava tão necessitado desenvolve alguns desses argumentos.
O que mais me impressionou na obra de Piketty, para além da desmedida tarefa de recolha de evidência empírica histórica, na qual a ajuda de Saez e de Atkinson é crucial, é o facto dela se movimentar no âmbito dos instrumentos analíticos centrais do mainstream macroeconómico, designadamente da teoria do crescimento económico. Não deixa de ser curioso notar que o não mainstream económico, sempre desejoso de criticar o referencial neoclássico, tenha invocado o alcance de uma obra que se movimenta precisamente no âmbito do seu instrumental principal. Piketty trabalha com aproximações empíricas à taxa de acumulação do capital (representada pela velha taxa de poupança s da nossa formação macroeconómica básica), usa a taxa de crescimento económico g e a taxa de retorno do capital r para estudar no longo as leis fundamentais da acumulação e repartição do rendimento. As diferenças entre os conceitos de riqueza W e de capital K são conhecidas e devem ser tidas em devida conta. A riqueza W inclui dimensões que não integram a natureza produtiva do capital K.
Neste quadro conservador do instrumental básico da teoria do crescimento económico, o comportamento da relação “s/g” é fulcral para entender o comportamento crescente do rácio “W/Y – Riqueza/rendimento” só interrompido nos períodos de destruição de capital, associados em regra a períodos de intensidade de guerras. Alguns comentadores do livro de Piketty têm insistido no facto de na relação “s/g” ser necessário incluir a taxa de depreciação do capital que envolve como sabemos a necessidade de alocação de recursos de poupança para manter a capacidade produtiva ao mesmo nível. Teríamos assim a relação”(s/g+d)”, em que d é a taxa de depreciação do capital, para descrever o comportamento dinâmico da economia no longo prazo.
O melhor argumento de que a argumentação de Piketty é desenvolvida com utilização do instrumento neoclássico do crescimento económico consiste em lermos o excelente artigo que Solow, inequivocamente o pai da moderna teoria do crescimento económico de inspiração neoclássica, dedicou à obra de Piketty.

 (Robert Solow)
Sempre entendi que a melhor via para se criticar o mainstream neoclássico era dominar melhor que ninguém o seu instrumental e realizar uma crítica interna aos seus pressupostos. Na transição democrática da Faculdade de Economia do Porto, no imediatamente pós 25 de abril de 1974, esta questão esteve ao rubro, pois rapidamente se cavou alguma divisão entre os que pensavam que era necessário abrir o plano de estudos aos paradigmas alternativos, designadamente o marxista, e os que consideravam que era necessário fazer a crítica interna do paradigma neoclássico, lecionando-o com rigor para melhor o criticar. Situava-me então no estabelecimento de pontes entre esses dois universos. Fui um leitor atento e até pedagogo do marxismo económico, distinguindo sempre entre a vulgata mecanicista e o marxismo mais lúcido. Mas nunca abdiquei de ensinar com rigor o paradigma neoclássico para o melhor criticar. Tínhamos na altura os nossos mentores intelectuais que iam de autores como Joan Robinson da Escola de Cambridge, a influência de Sraffa, Luigi Pasinetti, Bernard Rosier e outros e estávamos muito bem acompanhados.
A obra de Piketty vem confirmar que tínhamos razão. Um dos grandes alcances do Capital de Piketty é o de conseguir reintroduzir a questão da repartição e distribuição do rendimento no crescimento económico e com isso elevar o pensamento económico a uma melhor compreensão das leis gerais do capitalismo de hoje. Não sabíamos então que a nossa intuição estava certa, tínhamos apenas essa intuição e faltava-nos reconhecimento científico para o impor. 40 anos depois, com todas as suas insuficiências, a obra de Piketty ratifica a posteriori as nossas intuições. Por isso, 2014 mesmo que tenha sido um ano difícil sempre trouxe esse consolo, para além de ter confirmado definitivamente a notoriedade de Piketty. Não é coisa pouca.

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