Estou de acordo com Gavyn Davies no Financial Times ao considerar a obra Capital in the
Twenty-First Century de Thomas Piketty o livro do ano. Tendo
Piketty escrito originalmente a obra em francês e sendo o seu posto de trabalho
na velha Sorbonne, não tenho dúvidas em considerar o acontecimento um facto
revolucionário nas condições de disseminação do pensamento económico. É verdade
que há longo tempo Piketty vem mantendo colaboração regular com economistas
anglo-saxónicos de grande notoriedade nos últimos tempos como Emmanuel Saez
(também francês mas há longo tempo em Berkeley), Gabriel Zucman e Tony
Atkinson, o que mostra que não é propriamente um outsider do mainstream anglo-saxónico. Mas ter a
Sorbonne e um original francês nas bocas do mundo é uma grande obra, e isso
explica a grande abertura e humildade de Piketty a todas as críticas,
comentários, achegas e alfinetadas que o livro tem suscitado. Piketty já
ganhou, porque suscitou todo um debate generalizado na academia e na imprensa
económica (veja-se o espantoso número de vendas do Capital).
Mas há argumentos mais profundos para justificar
a agitação de ideias (e como dela está carenciado o pensamento económico) que a
obra provocou.
Este post
escrito numa manhã distendida de Natal de que estava tão necessitado desenvolve
alguns desses argumentos.
O que mais me impressionou na obra de Piketty,
para além da desmedida tarefa de recolha de evidência empírica histórica, na
qual a ajuda de Saez e de Atkinson é crucial, é o facto dela se movimentar no âmbito
dos instrumentos analíticos centrais do mainstream
macroeconómico, designadamente da teoria do crescimento económico. Não deixa de
ser curioso notar que o não mainstream económico, sempre desejoso de
criticar o referencial neoclássico, tenha invocado o alcance de uma obra que se
movimenta precisamente no âmbito do seu instrumental principal. Piketty
trabalha com aproximações empíricas à taxa de acumulação do capital
(representada pela velha taxa de poupança s da nossa formação macroeconómica básica),
usa a taxa de crescimento económico g e a taxa de retorno do capital r para
estudar no longo as leis fundamentais da acumulação e repartição do rendimento.
As diferenças entre os conceitos de riqueza W e de capital K são conhecidas e
devem ser tidas em devida conta. A riqueza W inclui dimensões que não integram
a natureza produtiva do capital K.
Neste quadro conservador do instrumental básico
da teoria do crescimento económico, o comportamento da relação “s/g” é fulcral
para entender o comportamento crescente do rácio “W/Y – Riqueza/rendimento” só
interrompido nos períodos de destruição de capital, associados em regra a períodos
de intensidade de guerras. Alguns comentadores do livro de Piketty têm insistido
no facto de na relação “s/g” ser necessário incluir a taxa de depreciação do capital que envolve como sabemos a necessidade de alocação de recursos de
poupança para manter a capacidade produtiva ao mesmo nível. Teríamos assim a
relação”(s/g+d)”, em que d é a taxa de depreciação do capital, para descrever o
comportamento dinâmico da economia no longo prazo.
O melhor argumento de que a argumentação de
Piketty é desenvolvida com utilização do instrumento neoclássico do crescimento
económico consiste em lermos o excelente artigo que Solow, inequivocamente o
pai da moderna teoria do crescimento económico de inspiração neoclássica,
dedicou à obra de Piketty.
(Robert Solow)
Sempre entendi que a melhor via para se criticar
o mainstream neoclássico era dominar
melhor que ninguém o seu instrumental e realizar uma crítica interna aos seus
pressupostos. Na transição democrática da Faculdade de Economia do Porto, no
imediatamente pós 25 de abril de 1974, esta questão esteve ao rubro, pois
rapidamente se cavou alguma divisão entre os que pensavam que era necessário
abrir o plano de estudos aos paradigmas alternativos, designadamente o
marxista, e os que consideravam que era necessário fazer a crítica interna do
paradigma neoclássico, lecionando-o com rigor para melhor o criticar. Situava-me
então no estabelecimento de pontes entre esses dois universos. Fui um leitor
atento e até pedagogo do marxismo económico, distinguindo sempre entre a
vulgata mecanicista e o marxismo mais lúcido. Mas nunca abdiquei de ensinar com
rigor o paradigma neoclássico para o melhor criticar. Tínhamos na altura os
nossos mentores intelectuais que iam de autores como Joan Robinson da Escola de
Cambridge, a influência de Sraffa, Luigi Pasinetti, Bernard Rosier e outros e
estávamos muito bem acompanhados.
A obra de Piketty vem confirmar que tínhamos razão.
Um dos grandes alcances do Capital de Piketty é o de conseguir reintroduzir a
questão da repartição e distribuição do rendimento no crescimento económico e
com isso elevar o pensamento económico a uma melhor compreensão das leis gerais
do capitalismo de hoje. Não sabíamos então que a nossa intuição estava certa, tínhamos
apenas essa intuição e faltava-nos reconhecimento científico para o impor. 40
anos depois, com todas as suas insuficiências, a obra de Piketty ratifica a
posteriori as nossas intuições. Por isso, 2014 mesmo que tenha sido um ano difícil
sempre trouxe esse consolo, para além de ter confirmado definitivamente a notoriedade
de Piketty. Não é coisa pouca.
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