quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

REFLEXÕES EM TORNO DO TRAMBOLHÃO DO RUBLO



Já não há pachorra para aguentar o fulgurante guru Boaventura Sousa Santos que nos brinda na Visão com uma crónica sobre o advento de uma III Guerra Mundial dirigida, segundo o nosso cronista do apocalipse, pelos Estados Unidos em linha direta contra a Rússia e indiretamente contra a China, com a Ucrânia como pretexto.
BVS parece refinar com a idade e com a dimensão do seu reconhecimento e financiamento internacional, parecendo aspirar a um estatuto de supremo intelectual revolucionário, acolhido pela sua vetusta e sombria Coimbra. Tudo bem. Todos temos o direito de escolher as nossas trajetórias. Mas nesta questão só há uma questão que me atormenta. É que face a estes delírios do supremo intelectual revolucionário, vejo-me cada vez mais perto de posições como a de José Manuel Fernandes no Observador e isso sim é extremamente preocupante. Alto lá, paremos para pensar, porque tal proximidade é mais perigosa do que qualquer vírus ameaçador.
Ora uma boa forma para ganhar alguma distância face ao problema é refletir um pouco sobre o rublo e sobre a sua poderosa queda, face à incapacidade manifesta do Banco Central russo de suster esse processo, apesar da desmedida subida da taxa de juro. A jogada de afrontamento gizada por Putin contra a União Europeia e americanos, que explorou a deficiente e precoce avaliação por parte das forças ocidentais do que se estava a passar em termos de libertação da Ucrânia, nada atentas aos fantasmas que circulavam em torno da espontaneidade do movimento, não pode ser compreendida sem recuarmos ao desmantelamento da União Soviética e sobretudo à criação de centros de riqueza constituídos nos tempos de Yeltsin, nos raros momentos em que estaria sóbrio para racionalizar essa distribuição.

Pensaram então alguns ideólogos da economia de mercado que a distribuição de riqueza então operada criaria, por simples ato de defesa dos interesses adquiridos por essa redistribuição ad-hoc, a formação de uma economia de mercado, com os inerentes quadros legais de respeito pela propriedade. O argumento era mais ou menos este: os novos ricos e proprietários teriam todo o interesse em transformar-se em guardiões desse quadro legal, de modo a proteger-se de quaisquer intrusos de segunda e terceira geração, recetivos à ideia de questionar por que razão não seria possível uma nova redistribuição ad-hoc.

Como Branco Milanovic alertava há dias, esse argumento esqueceu um pormenor vital. Os primeiros e segundos beneficiários de tal processo não canónico de acumulação primitiva sem o qual o capitalismo não vive dispunham de uma outra forma de proteção garantida pela globalização financeira: a colocação do capital no exterior e por essa via o esvaziamento de uma vaga de fundo a favor da constituição de um quadro legal de defesa e proteção da propriedade, independentemente da sua origem. A globalização (financeira) esbate significativamente senão suprime a necessária e desejável luta pelo papel da lei no país de origem do capital expatriado.
Num país em que os 10% mais ricos detêm 85% dos ativos (dados do Crédit Suisse Global Wealth Report, citados por Milanovic), não é possível esquecer a dependência de percurso gerada pelas vias que determinaram essa concentração de riqueza. Não me admiraria que parte dos referidos 10%, até eventualmente nas boas graças de Putin, esteja na base da significativa saída de capitais que estão por detrás da queda descontrolada da moeda russa.
Milanovic acrescenta ainda uma outra pitada ao seu argumento, que vai buscar ao Teorema de Coase. Em termos de eficiência, há o argumento de que não interessa a quem serão destinados os resultados da redistribuição de riqueza. Quem for o beneficiário da proximidade ao poder, rapidamente venderia esses ativos a empresários que aplicariam eficientemente tais recursos. Tal processo não se concretizou porque a sensação de injustiça das regras de distribuição leva sempre a admitir a hipótese de uma nova redistribuição coerciva. A entourage de Putin não será exatamente a mesma da que rodeava Yeltsin e teve acesso a tais benefícios de redistribuição primitiva

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