Já não há pachorra para aguentar o fulgurante
guru Boaventura Sousa Santos que nos brinda na Visão com uma crónica sobre o advento
de uma III Guerra Mundial dirigida, segundo o nosso cronista do apocalipse, pelos
Estados Unidos em linha direta contra a Rússia e indiretamente contra a China,
com a Ucrânia como pretexto.
BVS parece refinar com a idade e com a dimensão
do seu reconhecimento e financiamento internacional, parecendo aspirar a um
estatuto de supremo intelectual revolucionário, acolhido pela sua vetusta e
sombria Coimbra. Tudo bem. Todos temos o direito de escolher as nossas trajetórias.
Mas nesta questão só há uma questão que me atormenta. É que face a estes delírios
do supremo intelectual revolucionário, vejo-me cada vez mais perto de posições
como a de José Manuel Fernandes no Observador e isso sim é extremamente
preocupante. Alto lá, paremos para pensar, porque tal proximidade é mais
perigosa do que qualquer vírus ameaçador.
Ora uma boa forma para ganhar alguma distância
face ao problema é refletir um pouco sobre o rublo e sobre a sua poderosa
queda, face à incapacidade manifesta do Banco Central russo de suster esse
processo, apesar da desmedida subida da taxa de juro. A jogada de afrontamento
gizada por Putin contra a União Europeia e americanos, que explorou a
deficiente e precoce avaliação por parte das forças ocidentais do que se estava
a passar em termos de libertação da Ucrânia, nada atentas aos fantasmas que
circulavam em torno da espontaneidade do movimento, não pode ser compreendida
sem recuarmos ao desmantelamento da União Soviética e sobretudo à criação de
centros de riqueza constituídos nos tempos de Yeltsin, nos raros momentos em
que estaria sóbrio para racionalizar essa distribuição.
Pensaram então alguns ideólogos da economia de
mercado que a distribuição de riqueza então operada criaria, por simples ato de
defesa dos interesses adquiridos por essa redistribuição ad-hoc, a formação de uma economia de mercado, com os inerentes
quadros legais de respeito pela propriedade. O argumento era mais ou menos
este: os novos ricos e proprietários teriam todo o interesse em transformar-se
em guardiões desse quadro legal, de modo a proteger-se de quaisquer intrusos de
segunda e terceira geração, recetivos à ideia de questionar por que razão não
seria possível uma nova redistribuição ad-hoc.
Como Branco Milanovic alertava há dias, esse argumento
esqueceu um pormenor vital. Os primeiros e segundos beneficiários de tal
processo não canónico de acumulação primitiva sem o qual o capitalismo não vive
dispunham de uma outra forma de proteção garantida pela globalização
financeira: a colocação do capital no exterior e por essa via o esvaziamento de
uma vaga de fundo a favor da constituição de um quadro legal de defesa e proteção
da propriedade, independentemente da sua origem. A globalização (financeira)
esbate significativamente senão suprime a necessária e desejável luta pelo
papel da lei no país de origem do capital expatriado.
Num país em que os 10% mais ricos detêm 85% dos
ativos (dados do Crédit Suisse Global Wealth Report, citados por Milanovic), não
é possível esquecer a dependência de percurso gerada pelas vias que
determinaram essa concentração de riqueza. Não me admiraria que parte dos
referidos 10%, até eventualmente nas boas graças de Putin, esteja na base da
significativa saída de capitais que estão por detrás da queda descontrolada da
moeda russa.
Milanovic acrescenta ainda uma outra pitada ao
seu argumento, que vai buscar ao Teorema de Coase. Em termos de eficiência, há
o argumento de que não interessa a quem serão destinados os resultados da
redistribuição de riqueza. Quem for o beneficiário da proximidade ao poder,
rapidamente venderia esses ativos a empresários que aplicariam eficientemente
tais recursos. Tal processo não se concretizou porque a sensação de injustiça
das regras de distribuição leva sempre a admitir a hipótese de uma nova
redistribuição coerciva. A entourage de Putin não será exatamente a mesma da
que rodeava Yeltsin e teve acesso a tais benefícios de redistribuição primitiva
Sem comentários:
Enviar um comentário