Numa altura em que o espectro da estagnação deflacionária se perfila no horizonte económico da União Europeia, a Abeconomics não consegue afastar decisivamente o fantasma da recessão no Japão, os países emergentes com a China à cabeça (ver aqui notícia do Financial Times de 30.11.2014 sobre os riscos de uma espiral deflacionária)
não são propriamente um motor ladino da economia mundial e que o afundamento em curso do preço do petróleo tenderá a gerar profundas amarguras em países com rigidez da receita fiscal determinada pelo peso orçamental exorbitante de tal recurso (Angola como exemplo e, por isso, muita atenção aos pagamentos dependentes das receitas orçamentais ), é tempo de nos focarmos na economia americana. A preservação de um foco de crescimento nas âncoras da economia mundial é crucial, mesmo que saibamos que a economia americana não é propriamente um modelo de extroversão ao mundo.
Mas o que é que de relevante se está a passar
nesta conjuntura macroeconómica made in
USA e que valha a pena trazer para o debate macroeconómico?
A questão prende-se principalmente com os sinais
da conjuntura macroeconómica que o banco central americano (FED) deve integrar
para acomodar a sua política monetária. Em tempos de taxas de juro praticamente
nulas (o tão repetidas vezes aqui invocado zero
lower bound) e com os sinais de que a recuperação da economia americana
parece finalmente começar a ser sustentada, está nos livros que o mercado terá
o seu foco de expectativas centrado no momento em que o FED mudará a sua
política de taxa de juro. E, como sabemos, o Comité do FED (o chamado FOMC – Federal Open
Market Committee) que completa a presidência de Janet Yellen e a
vice-presidência de Stanley Fisher é composto por duas famílias de orientações
tão popularizadas na gíria terminológica financeira dos EUA: os “falcões” que
aspiram a todo o momento o regresso à restrição monetária, subindo taxas e as
“pombas” que tenderão a adiar o mais possível esse impulso restritivo. Os
primeiros são particularmente sensíveis à fobia inflacionária e abespinham-se
com qualquer continuidade de estímulo (mesmo que monetário) à economia. Os
segundos, sabiamente em meu entender, estão cientes de que é largamente
preferível uma intervenção tardia no controlo da inflação a uma restrição
precoce da economia inviabilizadora da sustentabilidade da recuperação.
Recentemente, a precipitada subida do imposto sobre as vendas (imposto ao consumo)
no Japão e a sua imediata repercussão na queda do produto japonês alerta-nos
para a incontinência dos falcões e deu alento às pombas (mas que estranha
linguagem!).
Neste
contexto, é crucial para o debate macroeconómico estar atento ao conjunto de indicadores
que o FED utiliza para medir o pulso à recuperação da economia americana para
decidir o rumo a dar à gestão de expectativas. Sabemos através dos sucessivos
discursos de Janet Yellen que esse conjunto de indicadores é vasto e que, como
o FED tem o duplo mandato da estabilidade dos preços e do mercado de trabalho
(taxa de desemprego como objetivo a gerir), os indicadores do mercado de
trabalho assumem surpreendentemente (para nós europeus, esclareça-se) uma
notoriedade crucial. E, nos últimos tempos, a questão essencial consistiu em
explicar por que razão o crescimento económico e a recuperação da taxa de
desemprego coexistiam com níveis de subutilização dos recursos existentes (o
chamado slack). Nessa explicação,
houve um foco intenso sobre as consequências da recessão terem retirado do
mercado de trabalho trabalhadores que tenderão a não regressar embora estejam
em idade ativa. Mais recentemente ainda, o fortalecimento do dólar que tende
(apesar da baixa extroversão da economia americana) a rebaixar a inflação
interna e a descida continuada do preço do petróleo (cujo efeito
desinflacionário é mais debatido e controverso) constituem fatores para
complicar a vida ao FED e ao jogo de forças “falcões versus pombas” que se
confronta no FOMC. A questão do impacto desinflacionário da descida do preço do
petróleo tem que se lhe diga, pois não pode ser esquecido o aumento brutal da
produção de petróleo no intramuros da economia americana, sobretudo após a
descoberta de novas origens extrativas (ver aqui e aqui aqui os posts de P. Krugman sobre a matéria.A possibilidade da economia americana estar finalmente em recuperação sustentada e apesar disso as tendências inflacionárias não emergirem com toda a nitidez poderá baralhar a decisão a tomar pelo FED. Nestas coisas, a semântica das declarações públicas dos principais responsáveis pela decisão estará sob o escrutínio do mercado. Nos últimos tempos, o FED tem usado a expressão de que as taxas de juro tenderão a permanecer baixas “por um período considerável de tempo”. Provavelmente essa expressão será alterada a curto prazo. O problema, tal como Tim Duy (um seguidor atento destas questões) o assinala, é que o FED habituou o mercado a gerir as suas expectativas através de conferências de imprensa, que não acompanham todas as reuniões do FOMC. E o próprio Tim Duy se interroga sobre o timing espaçado dessas conferências ser o mais adequado para uma situação de filigrana como a que se vive atualmente.
E por cá pelas bandas europeias? Pela minha parte
caracterizaria a situação europeia com uma metáfora futebolística. Face à
inépcia dos restantes elementos da equipa das instituições europeias, o BCE
aparece aos olhos dos mercados como simultaneamente um homem de defesa, de meio
campo e de ataque, uma espécie de super jogador de que se espera o impossível e
o inimaginável. Mas pelos resultados que se conhecem o super jogador estará
fora de forma ou avaliou mal o terreno em que deveria passear a sua classe. A jornalista do Financial Times Claire Jones diz-nos hoje a partir de Frankfurt
que a reação dos bancos europeus aos dois primeiros leilões de empréstimos a
longo prazo através dos quais o BCE esperava chegar finalmente ao terreno real
das PME está a revelar-se senão um flop,
pelo menos algo abaixo das melhores expectativas. A baixa resposta dos bancos
europeus parece dar razão às vozes que afirmam que os bancos não precisam de
liquidez, pois a procura de crédito continua anémica e os bancos acreditam pouco
na capacidade dos tomadores para pagarem tais empréstimos.
E não menos importante, a descida do preço do
petróleo está a gerar no interior do BCE mais uma controvérsia sobre a qual
Draghi terá de se impor. A descida do preço do petróleo está a ser entendida
pela linha Draghi como uma ameaça suplementar às ameaças deflacionárias e,
consequentemente, como mais um motivo para o estímulo monetário à economia. Já o banco central alemão pela voz do seu governador Jens Weidmann encara essa
descida como uma forma de estímulo à economia, justificando segundo tal
perspetiva a não necessidade dos ímpetos estimuladores de Draghi. Voltaremos a
esta questão pois, aparentemente, o FED e o BCE terão respostas diferentes à referida descida do preço do petróleo. O primeiro não interpretará essa descida
como necessidade de estímulo à economia americana, ao passo que o segundo
utiliza essa descida como fator adicional de justificação do estímulo das operações
de financiamento a longo prazo à economia europeia. Em meu entender, o problema
não é a diferente interpretação dessa descida de preço. O problema é ela
ocorrer em economias (os EUA e a União Europeia) com perspetivas de crescimento
significativamente distintas a curto e médio prazo. Essa é que é a diferença
crucial.
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