quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

UM LIVRO E UM FILME



Terão pouco a ver um com o outro – um romance relativamente recente e um filme rodado ao longo de doze anos, a autoria de um quase septuagenário francês e a de um cinquentinha norte-americano, uma narrativa em torno das memórias de um homem em idade crepuscular e momentos de vida centrados num rapaz – e não saberei explicar ao certo porque a minha cabeça lhes encontrou uma relação; mas essa é que foi essa.

O vencedor do Nobel da Literatura deste ano, Patrick Modiano (acima caricaturado pelo criativo oficial da Academia sueca Niklas Elmehed), era para mim um personagem quase desconhecido e a curiosidade levou-me até ele. Trinta segundos depois de aberto o primeiro dos livros escolhidos, a identificação que sentia era estranhamente reconfortante – eis porquê: “Nos últimos tempos, Bosmans pensava em certos episódios da sua juventude, episódios sem continuação, cortados cerce, rostos sem nome, encontros fugazes. Tudo isto pertencia a um passado longínquo, mas como estas breves sequências não estavam ligadas ao resto da sua vida, permaneciam em suspenso, num eterno presente. Não deixaria de se interrogar sobre este assunto, e nunca obteria respostas. Excertos que, para ele, permaneceriam para sempre enigmáticos. Começara a elaborar uma lista, procurando, ainda assim, encontrar pontos de referencia: uma data, um local preciso, um nome cuja ortografia lhe escapasse. Comprara um caderno preto, de capa plastificada, que guardava no bolso interior do casaco, o que lhe permitia acrescentar observações em qualquer momento do dia, sempre que uma daquelas recordações fulgurantes lhe acudia ao espírito. Tinha a impressão de se entregar a um jogo de paciência. (...) Estes fragmentos de recordações correspondiam aos anos em que a vida é entrecortada de encruzilhadas e se abrem tantas vias aos nossos olhos que a escolha se torna difícil. As palavras com que preenchia o caderno evocavam, para ele, o artigo respeitante à ‘matéria escura’ que enviara para uma revista de astronomia. Por detrás dos acontecimentos precisos e dos rostos familiares, sentia perfeitamente tudo o que se tornara matéria escura: breves encontros, reuniões falhadas, cartas perdidas, nomes e números de telefone figurando numa antiga agenda e que foram esquecidos, e aqueles e aquelas com quem nos cruzamos sem sequer nos apercebermos. Como nas astronomia, esta matéria escura era mais vasta do que a parte visível da vida. Era infinita. E ele anotava no seu caderno raras e débeis centelhas vindas do fundo da escuridão.. Tão débeis, as centelhas, que Bosmans fechava os olhos se concentrava, à procura de um pormenor inovador que lhe permitisse reconstituir o conjunto, mas não havia conjunto, nada mais do que fragmentos, poeira de estrelas. Gostaria de ter mergulhado naquela matéria escura, de restabelecer um a um os fios quebrados, sim, de voltar atrás para fixar as sombras e ficar a saber mais sobre elas. Impossível. Restava, portanto, encontrar os apelidos. Ou mesmo os nomes próprios. Serviam de ímanes. Traziam à superfície impressões confusas difíceis de esclarecer. Pertenciam à fantasia ou à realidade?”

O realizador Richard Linklater (acima caricaturado por Michael Cavna no decurso de um almoço à conversa para o “The Washington Post”) exibe atualmente entre nós um filme único e bem construído que, não só é exímio a captar laços pessoais e de família, como na forma como celebra a vida como ela é e no modo como cada ser humano a vai vivendo. Mais uma vez recorro a Jorge Leitão Ramos para sintetizar o essencial: “(...) bem vistas as contas, a vida que ‘Boyhood’ põe em cena é bastante trivial. Essa trivialidade, esse caminho normal com que, no fundo, qualquer um dos espectadores, em qualquer idade, encontra pontos de reconhecimento, é um dos méritos do filme, mas também uma das suas limitações. Haverá espectadores que se deixam ir no embalo absoluto [foi o meu caso, confesso], o filme dura duas horas e quarenta e cinco, mas ficaríamos lá outro tanto. No extremo oposto haverá quem diga que tudo aquilo não tem propósito, além do propósito de existir. E todas as gradações intermédias acontecerão. O que não acredito é que haja indiferença a este filme sobre o qual é justo afirmar: nunca se viu nada assim.”

Modiano e Linklater, dois exemplos mais da beleza da criação...

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