(Entretidos que estávamos a seguir o lio do choque fiscal do governo AD, que afinal não era choque e que verdadeiramente também não era dele, e que constitui uma forma de iniciar a governação ainda mais estapafúrdia do que a da mudança do logotipo, creio que a sociedade portuguesa não está a prestar a devida atenção à decisão do Tribunal da Relação que traz ao Ministério Público uma nova e estrondosa derrota. Gente de pena mais incisiva e afiada do que a minha, como por exemplo a de Manuel Carvalho que no Público de hoje assina um artigo que será difícil superar sobre tal decisão da Relação, dispensa-me obviamente de elaborar muito sobre a decisão em si própria e antes tecer alguma reflexão sobre o que pode explicar este passo em falso (interpretação benigna) do Ministério Público na operação Influencer ou esta ação com água no bico, e que bico, do mesmo.)
Do que veio a público da Operação Influencer, que conduziu à demissão de António Costa, designadamente em textos provenientes do Ministério Público e não de simples interpretação jornalística, emergiu a ideia alarmante de que alguns membros do Ministério Público não têm da governação e da movimentação dos interesses privados uma ideia amarrada à realidade. O domínio da governação que estava sob os olhos da investigação judicial era essencialmente o da atração/captação de investimento direto estrangeiro. Ora, se há domínio em que a competição é feroz, a captação de investimento ilustra-o na perfeição. Por isso, nem os governantes esperam acontecer, nem os investidores interessados são pombas mansas desdenhando a procura de contrapartidas. Conforme se compreende, uma coisa é o mundo da proatividade nas decisões, outra coisa bem diferente é a invasão da ilegalidade e da ilicitude que por vezes esses processos veiculam e aí, sim, estamos no domínio da corrupção ativa e passiva que deve ser obviamente combatida.
Pelo que foi tornado público, o Ministério Público (ou melhor os seus membros associados à Operação Influencer) deram mostras que não sabem distinguir as nuances atrás mencionadas e que, por isso, o seu conhecimento concreto da governação real é confrangedoramente truncado e limitado. Mesmo num cenário benigno de simples impreparação e ingenuidade, essa falta de conhecimento concreto das condições de governação alimenta as massas do populismo ululante e faz com que o MP preste um serviço péssimo à qualificação da democracia. Já seria mau por si só. Mas se a esta impreparação ou ingenuidade juntarmos a hipótese de justicialismo barato, segundo a qual o MP se arvoraria em guardião feroz da boa governação (entendida à luz dos seus valores) então as coisas piam mais fino e o MP poderia ser entendido como arma mais avançada de movimentos de “purificação” social e política, que tendem como sabemos a destruir a própria democracia.
Não quero de modo algum que das minhas palavras resulte a ideia de que alinho numa espécie de far west da governação em matéria de captação de investimento direto estrangeiro. Não sou ingénuo e bem sei que há coisas a decidirem-se numa lógica de proximidade ao poder que não é em si recomendável. Trabalho e dirigi uma empresa de consultadoria que pelo seu sistema de valores está muito longe do poder em Lisboa e nunca renegou essa distância. Tenho por isso uma clara perceção de que a proximidade pode beneficiar sempre quem dela quiser tirar proveito. A única forma em democracia de combater as possíveis derivas da governação e de quem delas quer tirar partido é a gestão da transparência. É óbvio que podem existir dossiers em que o sigilo da informação pode penalizar essa transparência, mas de modo geral não vejo outra forma de regular as condições da governação nessas áreas em que a competição pelos recursos de investimento é feroz. Outros dirão que as atividades de lobby podem ser reguladas e que legislação mais específica pode ser criada. Mas se existir essa legislação, rapidamente chegaremos a uma situação em que discutiremos a “prática” de implementação dessa legislação. Por isso, em última instância, teremos sempre uma questão de gestão da transparência.
Nota final
O Presidente Marcelo continua incorrigível e anuncia um fim de mandato que, oxalá me engane, pode contribuir para que o seu legado presidencial acabe por ser apoucado. Instado a pronunciar-se sobre a decisão do Tribunal da Relação que constitui a inspiração deste post, Marcelo obviamente que não a comentou diretamente, mas aludiu indiretamente à sua convicção de que com tal decisão a probabilidade de termos um português no Conselho é agora mais forte. Assisto estupefacto ao retorno do Presidente comentador. Isto ainda vai acabar mal.
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