(No dia de ontem, em trânsito para e vindo de Lisboa, não tive as condições ideais para gerir a minha mais profunda estupefação com o destempero verbal do Presidente Marcelo. Já há algum tempo que me tinha apercebido que o paradigma da incontinência e frenesim comunicacional de Marcelo tinha mudado. Já não estava em causa a necessidade de falar por tudo e por nada, mas comecei a antever a perda progressiva do poder de filtragem em favor de uma “gravitas” da função presidencial, paradoxalmente cada vez mais necessária no período difícil em que as últimas eleições colocaram a democracia portuguesa e o seu quadro parlamentar. Os percalços sucederam-se, a necessidade permanente de corrigir o que fora anteriormente dito intensificou-se, novas interpretações eram sistematicamente adicionadas, com grave ofensa à nossa inteligência de cidadãos. O que se passou ontem essencialmente no âmbito de um encontro com jornalistas estrangeiros equivale em meu entender a um agravamento irreversível da perda de filtros em função da valorização da gravitas presidencial. Primeiro, entrando sem qualquer aviso prévio ao Governo pela problemática matéria das possíveis reparações pelo nosso passado colonial, um poço sem fundo que mais uma vez desviará as atenções do que é essencialmente percecionar em termos do futuro português. Depois, com inenarráveis observações sobre António Costa e Luís Montenegro, com referências a modos de estar, de pensar e de exercer a governação, que não lembraria ao careca trazer para a praça pública, protagonizando um posicionamento de desaforo e até de indelicadeza gritante para o primeiro-Ministro cessante e para o que tem o pesado fardo de lhe suceder. A perda de filtros dá que pensar …)
Algo deve estar a acontecer no turbilhão de personalidade que Marcelo Rebelo de Sousa é e sempre foi. Imagino que Cavaco Silva estará a rir-se com o plano inclinado em que Marcelo se coloca a si próprio e talvez o rígido Cavaco esteja a pensar quão importante é a presença de uma Maria em tudo isto. Imagino também que o caso das gémeas terá representado um verdadeiro choque traumático para as suas convicções familiares e que o possa ter abalado a ponto de lhe toldar o equilíbrio emocional. Não me custa também admitir que a inqualificável posição da Procuradora-Geral da República no assunto da Operação Influencer o terá colocado numa problemática interrogação de consciência e sabemos que é uma personalidade sensível a essas matérias pela sua formação e convicções religiosas. Marcelo pode perfeitamente imaginar que foi enganado com a comunicação de um caso que não estava bem investigado e que determinou um parágrafo mortífero para a estabilidade política e isso, estando a acontecer, deverá corroê-lo por dentro até à exaustão.
Posso até entrar por mundos da psiquiatria mais vulgar e pensar que o frenesim comunicacional e a necessidade de pronunciamento praticamente on line são subterfúgios para o exercício solitário do poder.
Todos os que colocam a defesa da democracia em Portugal acima de todas as minudências e interrogações políticas devem estar preocupados com este plano inclinado, esta caminhada para o abismo em que o Presidente Marcelo se colocou a ele próprio, seja qual for a razão última e profunda que o possa explicar. A ideia de garante transmitida pela função presidencial é, no momento presente, mais importante do que nunca e demasiado importante para se dissolver nesta estranha dissolução da gravitas presidencial. As selfies que possam ser tiradas, e imagino que a sua procura tenda a diminuir, deixarão seguramente na imagem um rosto cada vez mais amargurado. Uma revisão de filtros irá ser necessária para que o fim do mandato presidencial possa concretizar-se com o mínimo de danos possíveis.
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