terça-feira, 23 de abril de 2024

TAXAS DE JURO NO TEMPO LONGO

 


(Já há algum tempo que a minha analista financeira de eleição, Gillian Tett, cronista no Financial Times, não inspirava um post neste blogue. É tempo de colocar a escrita em dia e de refletir sobre um artigo de meados de abril, que tem o comportamento das taxas de juro reais, taxas nominais corrigidas da inflação, como foco de atenção. A inspiração de Tett provém de uma investigação recentemente atualizada de Kenneth Rogoff, macroeconomista bastante citado em Portugal e com alguns textos publicados no Expresso, que a assina conjuntamente com Barbara Rossi e Paul Schmelzing. É importante referir que quando aqui se invoca o tempo longo, ele é mesmo bastante longo. A investigação trabalhou dados sobre taxas de juro reais desde 1311, data reportada à atividade na matéria da então República Italiana de Veneza. O gráfico que assinala este post é em si mesmo uma verdadeira preciosidade, pois é a primeira vez que visualizo um comportamento de taxas de juro reais num período tão extenso. O trend registado é sugestivo. Apresenta-se como uma curva sinusoidal descendente, permitindo concluir que no tempo longo o preço do dinheiro tem estruturalmente descido.)

Em tempos ainda recentemente influenciados pela ameaça altista verificada nas taxas de juro, este comportamento estruturalmente descendente das taxas de juro reais exige alguma contextualização, embora o devamos dizer com toda a frontalidade como pedia o outro, explicar o trend é bastante mais difícil, aliás como os autores da investigação e a própria Gillian o recordam.

Estamos todos recordados que a descida relativamente abrupta nas taxas de juro, os macroeconomistas falam a esse respeito de taxas de juro naturais ou de equilíbrio, observada no período imediatamente após a Grande Recessão de 2007-2008, suscitou uma grande onda de explicações entre os economistas. Era o tempo do “low zero bound” e taxas de juro reais ou negativas eram um quebra-cabeças. Muitos artigos foram produzidos tentando fixar uma explicação para o fenómeno, muita gente se pronunciou e se chegou à frente, mas essencialmente dois grandes macroeconomistas deixaram a sua marca na controvérsia suscitada. Ben Bernanke, que sabe do que fala, macroeconomista académico prestigiado e também ex-Presidente do FED USA, cunhou a célebre expressão “savings glut”, uma onda de excesso de poupança na economia mundial com origem asiática que se sobrepunha a toda a procura de financiamento de investimento. Por sua vez, Lawrence Summers cunhou outro conceito relevante dos tempos modernos, o de estagnação secular, na qual o excesso de poupança de Bernanke era integrado numa explicação mais geral, a que este blogue dedicou em Portugal abordagens pioneiras, bem antes do conceito aparecer na imprensa nacional especializada.

O surto inflacionista que emergiu após o período pandémico e a invasão russa da Ucrânia pareceu apagar o tempo das taxas de juro nulas ou negativas, houve mesmo quem tivesse pensado que essa história do novo normal das taxas baixas era uma valente treta. Essa reação pareceu-me na altura exagerada, até porque vários macroeconomistas, designadamente ligados ao Banco Central de Inglaterra tinham publicado investigações que apontavam razões para a descida da taxa natural de juro.

A investigação de Rogoff e seus pares (2) veio engolir num tempo mais longo todas essas controvérsias de curto prazo, do agrado de brokers e investidores financeiros, e esclarecer que existe de facto um tempo muito longo de descida da taxa real de juro. Mas o que é mais curioso é o facto dos autores não terem encontrado qualquer relação significativa e relevante com o comportamento das economias nesse mesmo tempo muito longo.

O que coloca uma interrogação suplementar e talvez decisiva: o que explica então nesse tempo muito longo a descida do preço real do dinheiro?

O gráfico de Rogoff e seus pares permite interpretar o período de taxas de juro reais nulas ou negativas como um período de desvio excessivo face ao trend historicamente descendente oferecendo às explicações de Bernanke e de Summers senão uma visão alternativa, pelo menos uma visão complementar e de tempo mais longo.

Não esquecendo que as limitações dos dados recolhidos podem ocultar dificuldades para a sua interpretação, explicando por essa via a aparente inexistência de relações significativas com o comportamento da atividade económica, o olhar intuitivo de Gillian Tett aponta para explicações possíveis: “Uma distinção-chave entre as sociedades modernas e pré-modernas  é a de que as inovações concretizadas a partir dos livros de contabilidade de dupla entrada para os computadores fizeram-nos acreditar que podemos prever, gerir e atribuir um preço aos riscos futuros, sem estar dependentes da produção de bens, como os nossos antepassados faziam. Na realidade, esta confiança é demasiadas vezes errada. Mas com justificação ou sem ela, a mudança cultural que se operou fez com que o dinheiro fosse mais abundante e fluido, obviamente fazendo descer o seu custo. São boas notícias. Mas isso suscita duas questões adicionais. Quando é que este trend descendente termina? E o que é que ele significa para as taxas correntes?”.

Afinal um velho problema de toda a economia. O mesmo fenómeno pode ser uma dupla explicação, a de curto prazo e a que é veiculada pelas lentes do tempo muito longo. E podem não coincidir! Fascinante, não?

 

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