(Sempre atenta à contemporaneidade, a revista The Economist dedica esta semana a sua edição ao trabalho remoto e à sua mais recente transformação em trabalho híbrido. Pego no tema como uma manifestação das grandes tendências de transformação do mercado de trabalho, especialmente no âmbito do que essa transformação oculta de possíveis contradições entre múltiplos objetivos e interesses. A partir de algo que emergiu como consequência direta da resiliência adaptativa do mercado de trabalho à pandemia, o trabalho remoto e híbrido passaram a estar enquadrados por uma multiplicidade de perspetivas – simplificando, envolvendo questões por exemplo a sustentabilidade dos padrões de mobilidade nas sociedades de mercado, a produtividade e a organização dos processos de trabalho, a felicidade e o bem-estar nos processos de trabalho, o interesse dos empregadores e do capital, a socialização e tantas mais dimensões. Embora o universo das empresas e dos proprietários do seu capital não o tenham perspetivado como tal, o trabalho híbrido corre o risco de se transformar numa importante conquista do mundo do trabalho e, por isso, dificilmente revertível para o regresso ao velho escritório. E é nessa perspetiva que o tema é fascinante. A sua importância subsiste resistindo a uma eventual conclusão que, do ponto de vista das empresas que abriram essa possibilidade aos seus colaboradores, até pode contrariar o mito de que a produtividade aumenta …)
Todos temos a perceção, realista porque sabemos quem somos, de que a experiência do trabalho remoto ou híbrido em Portugal não apresenta nem de perto nem de longe as dimensões e proporções que já assumiu noutras economias. A prospetiva transformada em realidade que encontramos em alguns jornais e revistas internacionais, principalmente americanos, de situações pungentes de cidades e de zonas urbanas específicas esvaziadas de serviços pelo motivo do encerramento de alguns escritórios e debanda de quadros e trabalhadores para o trabalho em suas casas não é propriamente a praia do trabalho híbrido em Portugal. A nossa situação é mais mitigada como seria previsível, sobretudo pelo facto de que uma grande parte do nosso aparelho produtivo não é propriamente campo fértil para a desmaterialização da ideia de escritório e do posto de trabalho associado.
Parto para este tema com a noção de que sou parte interessada na matéria. Os meus quatro dias de trabalho na semana repartem-se entre dois dias no escritório e outros dois em casa, com exceção de algumas semanas em que o trabalho exterior, fora do Porto ou implicando deslocações a Lisboa, vem complicar esta programação. Não tenho qualquer dúvida, porém, em reconhecer que a minha qualidade de vida ou bem-estar no trabalho melhorou significativamente com esta disposição. Como costumo dizer, dois dias em que posso evitar o infernal nó de Francos e as obras na Avenida da Boavista representam uma notória melhoria de bem-estar, não ignorando também a redução das externalidades negativas da minha mobilidade casa-trabalho.
Ser parte interessada na matéria não significa ignorar problemas concretos de organização que o trabalho híbrido traz inequivocamente aos coletivos empresariais. Bem sei que boas e bem-pensantes almas tendem a considerar a oposição entre a valorização do presencial e a do digital on line como uma manifestação dos tempos modernos da oposição entre o tradicionalismo conservador e a modernidade digital. Posso bem com essa pressão social e sou dos que entendo que, por mais ousadas que sejam as transformações digitais, a riqueza do face-to-face presencial é em algumas situações e matérias insubstituível. Isto não quer dizer que não reconheça existirem múltiplas atividades coletivas que podem ser realizadas com maior eficiência a nível digital. Todos os dias o comprovo na minha atividade profissional. Mas a elasticidade dessa substituição não é infinita.
Mas o que me parece é que o trabalho híbrido, devidamente contratualizado, entrou no domínio das conquistas sociais e, por isso, seria necessário um desastroso retrocesso social para deixar de o inscrever nas modernas relações de trabalho. O que significa que no meu modesto entender se trata de uma transformação à qual as empresas e as organizações em geral devem necessariamente adaptar-se, encontrando as fórmulas mais eficientes e imaginativas de as integrar na organização dos processos de trabalho. Por exemplo, o mundo da cooperação de recursos nos processos de trabalho, raiz essencial da competência coletiva das organizações, tem de ser reinventado no plano da coexistência do presencial e do digital.
A edição especial do Economist é importante para tipificarmos o estado da arte que, como habitualmente, nunca é o estado da arte adaptado à realidade portuguesa, obrigando a uma leitura contextualizada para as nossas condições e resistindo assim a importações acríticas do que foi observado em mundos mais avançados nessa experimentação.
Da edição do Economist destaco sobretudo o artigo publicado na secção Free Exchange onde se desconstrói o mito de que o trabalho remoto faz aumentar a produtividade. E, acertadamente em meu entender, o fundamento para essa desconstrução está no sempre necessário retorno aos “basics”: “Recorrendo à terminologia de Ronald Coase, um economista que se focou na estrutura das empresas, todos estes problemas (do trabalho híbrido e remoto) implicam um aumento nos custos de coordenação, transformando a empresa coletiva em algo de mais pesado”.
Pois, é isso mesmo. Ignorar que o trabalho remoto ou híbrido representa um problema organizacional equivaleria a uma pura ingenuidade e numa economia de mercado as ingenuidades pagam-se regra geral bastante caro.
Sem comentários:
Enviar um comentário