sexta-feira, 19 de julho de 2019

HÁ CÁ CADA INTELECTUAL!

(A Região no European Innovation Scoereboard)


(Breves reflexões em torno de uma crónica de António Guerreiro no Ípsilon de hoje no Público. Ou como se podem transmitir ao espaço público de opinião ideias relevantes e a ter em conta e contradizer posteriormente o alcance dessas ideias.)

No espaço da crónica jornalístico-ensaísta que cada vez escasseia na imprensa portuguesa, António Guerreiro é um autor que se destaca. A sua escrita é muito elaborada, discorre sobre temas que assustam muita gente pela sua sofisticação teórica e conceptual e é, por vezes, um observador impiedoso das fraquezas nacionais e do capitalismo à portuguesa. Acompanhar as suas reflexões implica tempo, já que a sua escrita exige atenção e sobretudo algumas referências para a compreender e valorizar.

Há dias, numa das suas crónicas que abre regularmente a segunda página do ÍPSILON, Guerreiro insurgia-se contra uma perigosa deriva da opinião escrita em Portugal, que caracterizava como a expulsão do espaço escrito de uma intelectualidade mais elaborada, limitando o universo da reflexão, acantonando-o e proclamando a sua inutilidade real. Achei na altura que eram palavras sérias, ajustadas e que dá conta de um certo estreitamento da opinião pública nacional que se vai verificando na sequência da banalização instalada, que sobretudo a televisão e as revistas cor-de-rosa têm vindo a consagrar nos seus espaços de divulgação.

Hoje, numa crónica designada de “A inovação é o nosso destino”, António Guerreiro atira-se ao modo como alguns jornais em Portugal deram conta do salto recentemente observado por Portugal e pelas regiões Norte e Centro no ranking do “European Innovation Scoreboard”, colocando estas regiões no estatuto de regiões fortemente inovadoras (de sinal -): “Encontramos aqui todo o léxico da competição e os seus operadores metafóricos. A força do modelo competitivo do desporto desenha, para os sujeitos implicados, um percurso de melhoramento, de modo a atingir metas cada vez mais elevadas de perfeição, num cenário de luta de todos contra todos. O mérito de Portugal consiste sobretudo em se ter destacado nesse percurso e ter alcançado vitórias numa competição que começa sempre por ser contra si próprio. É a isto que se chama hoje “desafio”e “risco”.

O cronista envolve-se depois numas confusas referências ao modo como o ministro da Ciência e do Ensino Superior Manuel Heitor terá comentado o desempenho recente da economia portuguesa nesta matéria, aprisionando o conceito de inovação em torno das dimensões da “modernização tecnológica” e da “melhoria da competitividade”, que Guerreiro considerou invasão dos domínios da ideologia, coisa que não se recomendaria a um ministro da Ciência.

A crónica de António Guerreiro (link aqui) é um daqueles exemplos de incursões dos intelectuais que ele tanto preza por domínios que recomendariam uma melhor preparação. Assim, quando se fala nestas coisas, mesmo quando não se é economista, ignorar o meta-contributo de Schumpeter para o entendimento contemporâneo destas questões equivale a um desperdício incompreensível. Por muito que Guerreiro represente o universo dos intelectuais que tem uma reação alérgica quando o pensamento económico é invocado, Schumpeter pertence aquele universo de economistas em que economia e pensamento se combinam coerentemente e por isso não pode ser ignorado mesmo quando se vocifera ou pragueja sobre inovação.

Schumpeter desenvolveu uma espécie de meta-interpretação da dinâmica do desenvolvimento capitalista, colocando a inovação no centro dessa dinâmica e restringindo aliás o próprio conceito de empresário em função das capacidades para a desenvolver. “Ou mudas ou morres” é uma metáfora central da inovação que Schumpeter identifica essencialmente como melhorias de combinação de recursos existentes (inovações-produto e inovações-processo), acrescentando-lhe depois a descoberta de novas fontes de matérias-primas, de novos mercados e de novos modelos de organização empresarial como dimensões e modalidades de inovação. A inovação é impulsionada pela necessidade de dianteira e de avanço face aos concorrentes, cabendo à difusão dessas inovações (nos planos nacional e da economia mundial) o contraponto ao impulso de divergência que a inovação sempre representará. Poderemos questioná-la enquanto modelo de organização económica e social, mas a dinâmica do desenvolvimento capitalista é esta, assenta nesta tensão dinâmica entre inovação e difusão. Podemos questionar também se a concentração económica para além de limites razoáveis não tenderá a manter esta tensão dinâmica.

A tensão dinâmica que a inovação representa do ponto de vista do desenvolvimento capitalista pode ser, imperfeitamente, medida à medida que compreendemos melhor o modo como as diferentes inovações se produzem, em que contextos mais ou menos favoráveis, e que efeitos concretos determinaram nas economias. Esse é o aspeto mais paradoxal da inovação. É indeterminada à partida, isto é, não a conseguimos prever e tudo a que poderemos aspirar é compreendê-la melhor depois de ela se concretizar. Pode António Guerreiro discutir os contornos efetivos do índice que o European Innovation Scoreboard nos proporciona. Outros o fizeram e isso é inevitável. O que poderemos dizer é que o Innovation Scoreboard representa o melhor possível o conhecimento que hoje se tem do fenómeno inovação como uma sas principais tensões dinâmicas que define o capitalismo. Certamente que evoluirá à medida que o nosso conhecimento da inovação for melhorando entre os economistas, sobretudo no contexto de uma ciência económica cujo mainstream não consegue explicar cabalmente essa mesma inovação, despertando por isso outro tipo de problemas de conflitos entre paradigmas com reflexos no poder académico.

Por isso, as incursões mais semânticas do que conceptuais pelo tema que Guerreiro desenvolve parecem ter sido arrancadas não se sabe donde, mas certamente com muita dificuldade. A folha (ou ecrã) branco é sempre um problema para qualquer um na desorganização das nossas vidinhas. Mas este contributo do intelectual Guerreiro é do tipo do que os brasileiros designam por “puxa saco” e não acrescenta grande coisa à defesa do intelectual no espaço da reflexão escrita na comunicação social.

(versão corrigida, 19.07.2019, 20.00)

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