Repescando os factos da semana constato um imperdoável esquecimento: o de aqui não ter referenciado a morte de João Gilberto. Corrijo agora, não precisando de acrescentar nada aos textos que sobre ele li por estes dias, em obituários brilhantes a que só me resta ensaiar uma modesta associação.
Talvez , ainda assim, citando alguns títulos ou excertos, dos mais objetivos (“inventor no final dos anos 50 de um estilo musical tornado culto”, eis como descreve o “Libération” o seu papel na criação da bossa nova) aos mais subjetivamente envolvidos (“gerações de brasileiros jamais se esqueceram da primeira vez que ouviram João Gilberto cantando ‘Chega de Saudade’ no rádio, em 1958”, escreve o seu amigo Nelson Motta num excelente e instrutivo texto publicado no “Expresso” que começa por prosseguir deste modo: “No centro de tudo um violão tocando um ritmo que ninguém jamais ouvira, que se parecia com o samba, mas não era o samba tradicional, era um balanço irresistível feito de acordes dissonantes e sequências harmónicas surpreendentes, envolvendo uma voz suave e doce, com impecável afinação e fraseado muito diferente das ‘grandes vozes’ da era do rádio, ainda na tradição operística, mesmo depois da invenção do microfone”). Foi, aliás, este mesmo Nelson Motta quem o descreveu em “O Globo” como sendo alguém que tirou “o máximo do mínimo”, numa linha próxima da do autor de um livro recente dedicado a reportar o nascimento da bossa nova (Ruy Castro) quando sublinhou que “ele queria aperfeiçoar a perfeição”.
Por cá, apreciei várias peças (como, de entre as mais improváveis, a de Mariana Madrinha no “Sol” falando da “brisa que acariciou o mundo”, a de Diogo Vaz Pinto no “Jornal i”, que explica porque lhe chama “o mestre da nuance em música” mas também evidencia os lados menos positivos e quase degradantes que acompanharam o seu fim de vida, ou a de Pedro Marta Santos na “Sábado”, tão singela quanto isto: “João Gilberto é daquelas raras figuras que foram, em simultâneo, fim e meio, significado e significante, pacifismo e revolução. A sua doçura era uma arma, a leveza, gesto fraturante, e o particular, universal. Poucas vezes, em qualquer arte, um homem é exato sinónimo de um legado antigo (o samba, o chorinho, o jazz) e de um mundo novo (a bossa nova). Com Tom Jobim, Gilberto reescreveu a forma como nos movemos e amamos. Apenas isso.”).
A última vez que ouvi João Gilberto ao vivo foi no Rio e já o notei cansado, algo alheado e não direi propriamente desafinado mas algo a tender para tal. Sendo que um homem desta dimensão artística está acima disso tudo porque fará parte de uma posteridade a que só acedem os melhores.
(cartoons de André Carrilho, https://expresso.pt e Cau Gomes, http://atarde.uol.com.br)
Sem comentários:
Enviar um comentário